Luís Mourão (1960-2019): uma releitura singular da ficção portuguesa

Especialista em Raul Brandão, Vergílio Ferreira, ou Gonçalo M. Tavares, devem-se a Luís Mourão alguns dos mais inovadores estudos sobre o romance português moderno e contemporâneo.

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Bastaria a pedrada no charco que foi a publicação do livro Um Romance de Impoder – A Paragem da História na Ficção Portuguesa (Angelus Novus, 1997) para assegurar a Luís Mourão um lugar tão incontornável quanto singular entre os investigadores que se têm debruçado sobre a ficção portuguesa contemporânea.

Professor da Escola Superior de Educação do Instituto Politécnico de Viana do Castelo, o ensaísta morreu quinta-feira em Braga, onde residia, na sequência de um tumor cerebral. Tinha 59 anos. O seu funeral está marcado para as 10h30 deste sábado, com uma cerimónia na Igreja de Santa Eulália, na freguesia de Tenões, a que se seguirá, às 12h30, a cremação do corpo no cemitério de Braga.

Livros como o já referido Um Romance de Impoder, no qual sugere que o desapontado retrato do país na ficção portuguesa do pós-25 de Abril (e do pós-25 de Novembro de 1975) vinha reatar uma tradição que remontava ao Húmus de Raul Brandão, ou o mais recente Sei que já não, e todavia ainda (2003), igualmente publicado pela editora coimbrã Angelus Novus, da qual foi co-fundador com Osvaldo Silvestre, são marcos de uma releitura inovadora da ficção portuguesa, centrada em tópicos como o da suspensão da história, o confronto com o informulável, ou ainda a noção de fim no texto literário.

Uma escolha ética

Se o reconhecimento da qualidade e influência dos seus estudos era consensual nos círculos académicos, Mourão nunca foi propriamente um ensaísta em voga, desses que são convidados para tudo e mais alguma coisa, porque nunca esteve para aí virado. “Todos os textos do Luís eram sempre fundamentais, e o mais comovente é a discrição com que fazia tudo”, disse ao PÚBLICO o ensaísta Pedro Eiras. “Nunca procurou ribaltas, o que nele era um traço de personalidade, mas também, muito mais do que isso, uma escolha ética”, acrescenta.

Vendo Luís Mourão como “alguém que estava interessado em pensar a sério” e que “nunca quis fazer fogo-de-artifício com o currículo”, Eiras não tem dúvidas: “Era mesmo, mesmo, dos maiores, mas sempre na sombra”.

Também o ensaísta e seu grande amigo Carlos Mendes de Sousa sublinha a intensa criatividade do pensamento ensaístico do autor de Um Romance de Impoder, que não só nos dá “uma nova visão” da ficção portuguesa contemporânea, como renova “o próprio formato do ensaio”. E se o notório campo de eleição de Luís Mourão era a ficção narrativa, Carlos Mendes de Sousa observa que não foram menos excelentes as suas incursões na poesia, lembrando, por exemplo, o notável ensaio que dedicou ao poema A Mão no Arado, de Ruy Belo, para a antologia Século de Ouro, co-organizada por Osvaldo Silvestre e Pedro Serra.

Todos arrependidos

Natural do Porto, Luís Mourão licenciou-se em Filosofia na Universidade Católica de Braga e fez o seu mestrado e posterior doutoramento na Universidade Nova de Lisboa. No primeiro, orientado por Eduardo Prado Coelho, assumiu um formato ele próprio de tipo diarístico para falar dos diários de Vergílio Ferreira, ousadia que a academia não apreciou por aí além. “Começava a tese por um ‘meu caro Vergílio Ferreira’, e aquilo foi mal recebido, porque não souberam reconhecer e valorizar a sua originalidade”, conta Isabel Allegro Magalhães, que depois orientaria, em 1994, a sua tese doutoramento, que constitui a versão original, e já com o mesmo título, de Um Romance de Impoder.

“Foi o melhor aluno que tive na Faculdade, era uma pessoa de uma estatura intelectual, e também humana, extraordinária”, diz, destacando Luís Mourão entre os ensaístas literários da sua geração e lamentando que este tenha saído da Universidade Nova “sem a nota máxima”, o que atribui à insensibilidade de alguns dos seus pares para a qualidade e criatividade do seu trabalho. “Mas hoje estão todos arrependidos”, garante.

Além dos livros já referidos, Mourão publicou, por exemplo, Vergílio Ferreira: Excesso, Escassez, Resto (Angelus Novus, 2001), e tem uma vastíssima obra dispersa, que inclui apresentações de livros, comunicações em colóquios e recensões e outros artigos em publicações periódicas. Aos dois autores que mais funda e sistematicamente estudou – Vergílio Ferreira e Raul Brandão –, talvez possa juntar-se Gonçalo M. Tavares, o nome que mais o interessou na geração actual. Segundo Isabel Allegro de Magalhães, terá mesmo deixado já praticamente preparado um volume em que pretendia reunir os diversos textos que dedicou ao autor de Jerusalém.

Mas Luís Mourão escreveu sobre dezenas de autores, de Carlos de Oliveira a Agustina, ou de Maria Gabriela Llansol a Mafalda Ivo Cruz, para citar apenas alguns poucos nomes, mas que bastem para dar uma noção da diversidade das obras sobre as quais se propôs pensar. Com resultados que, como sugere Pedro Eiras, tinham tendência a revelar-se decisivos. 

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