Tarsila e Portinari, ou a mestria de um Brasil popular e universal

Nos quadros de Tarsila do Amaral e Candido Portinari reside algo de muito belo na alma brasileira. Algo que é popular e universal.

Agora que o PÚBLICO anda por São Paulo, na terceira edição dos Vinhos de Portugal (este fim-de-semana, já que no anterior foi a sexta edição no Rio de Janeiro), é boa ocasião para lembrar que pode ser vista na capital paulista, até 28 de Julho, no Museu de Arte de São Paulo Assis Chateaubriand (​MASP) desenhado por Lina Bo Bardi, a mais completa exposição (92 obras) dedicada a Tarsila do Amaral (1886-1973), “uma das maiores artistas brasileiras do século 20 e figura central do modernismo”, tal como é descrita no painel central da exposição. Tarsila popular, nome da imponente mostra, dá continuidade a outras exposições que o MASP tem vindo a organizar desde 2016, reconsiderando a noção de “popular” na arte. E começou como? Com A mão do povo brasileiro 1969/2016 e Portinari popular, em 2016.

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Tarsila do Amaral, Abaporu, 1928

Ora Candido Portinari (1903-1962) é outro dos grandes nomes da pintura brasileira cuja obra pode ser também enquadrada em perspectiva, se visitarem o Museu Casa de Portinari, na cidade de Brodowski, a 337 quilómetros de São Paulo (o município, que ganhou o nome do polaco Alexandre Brodowski, pioneiro dos hoje praticamente extintos caminhos-de-ferro brasileiros, chegou a ser rebaptizado de Brodósqui, mas já recuperou o nome original). Há, ademais, vários pontos de contacto entre as obras e os percursos de Tarsila e Portinari que se tornam mais evidentes ao fazer, quase em sequência, estes dois percursos. As ligações ao modernismo (que Tarsila conduziu, depois, à antropofagia de Oswald de Andrade, autor de Pau-Brasil e seu marido de 1926 a 1929), a força e o valor das cores, o reflexo do povo nas telas, as aprendizagens em Paris, o regresso ao Brasil para imergir profundamente na realidade do seu país. Tarsila disse, quando voltou: “Sou profundamente brasileira e vou estudar o gosto e a arte dos nossos caipiras. Espero, no interior, aprender com os que ainda não foram corrompidos pelas academias”. E Portinari, que durante a estadia em Paris só pintara três naturezas-mortas (“e pequenas”), transfigurou-se no regresso, conforme conta Antonio Callado no seu Retrato de Portinari (Ed. Zahar): “Chegou ao Rio de Janeiro agressivo, doido por trabalhar e atirar quadros à cabeça dos fariseus. Trancou-se em casa e, em seis meses, pintou uns quarenta quadros. Foram a base dessa sua celebridade até hoje florescente.”

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Candido Portinari, Futebol, 1935

Mas a sua verdadeira casa foi a de Brodowski, onde nasceu e onde passou a infância e a juventude, sendo também (quando já vivia no Rio, onde viria a morrer), lugar de férias, recolhimento e meditação na vida adulta. E na praça em frente à casa, cujo museu é cuidadosamente gerido por Angelica Fabbri e uma dedicada equipa, ainda jogam futebol (como Portinari retratou em várias obras) meninos calçados e descalços, uns negros e outros loiros a denotar as origens italianas. O jornalista (e amigo) Fernando Kassab, da EPTV de Campinas, que nos levou a fazer este percurso e foi nele o cicerone perfeito, escreveu há dias, numa crónica, o resultado dessa experiência extraordinária: “Da última visita, semana passada, ‘vi’ Candido Portinari: na imensa praça que leva o nome do artista, crianças jogavam bola e brincavam, exatamente como nas pinturas do homem que soube amar a sua cidade como um devotado que ali buscava tudo o que precisava para transformar sua arte em uma coleção de referências e memórias, registros que comovem desde sempre.” O museu tem, ainda, uma coisa muito curiosa: reproduções tácteis das obras, em miniatura e em relevo, para que possam ser “vistas” por cegos, sejam quadros, objectos ou frescos.

Portinari tem mais de cinco mil obras, entre as quais os painéis de grandes dimensões (duas vezes 14x10 metros) Guerra e Paz, oferecidos pelo governo brasileiro à ONU em 1956. E entre as mais de 270 que Tarsila pintou encontra-se Abaporu (1928), obra icónica do movimento antropofágico e considerado o mais caro quadro brasileiro de sempre. Temporariamente exposto em São Paulo, Abaporu faz parte da colecção do Museu de Arte Latino-americana de Buenos Aires (MALBA). Avaliado em 45 milhões de dólares, o Brasil já tentou repatriá-lo, em 2011. Mas acabou por desistir, face ao preço pedido: 200 milhões.

Não tiveram um final feliz, Tarsila e Portinari. Ela acabou os seus dias confinada a uma cadeira de rodas, paralítica, devido a um erro médico numa cirurgia à coluna, em 1965; e ele morreu devido a uma intoxicação progressiva e crónica pelas tintas que usava nas telas. O que deixaram, porém, ao Brasil e ao mundo, não tem preço. A sua arte perdura, tal como o seu amor pela criação artística e pelas raízes a ela associadas. Porque nos quadros de Tarsila e Portinari reside algo de muito belo na alma brasileira. Algo que é popular e universal.

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