The Handmaid’s Tale escolhe a revolução — mas terá caído na espiral do aborrecimento?

À terceira temporada, a protagonista June troca a fuga pela luta em defesa das mulheres e em prol da queda do regime. A série distópica que transforma os Estados Unidos numa teocracia autoritária machista continua urgente e relevante, mesmo com a crítica a denunciar um enredo repetitivo e monótono.

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A protagonista June (Elisabeth Moss) na terceira temporada Hulu

Num sistema que oprime as mulheres, é delas que parte a luta — pelo menos é assim na nova temporada de The Handmaid’s Tale. Quase um ano depois do final agridoce do segundo capítulo, os três primeiros episódios da terceira temporada ficarão disponíveis no serviço de streaming NOS Play esta quinta-feira, 6 de Junho – um dia depois da estreia nos Estados Unidos na plataforma Hulu, que não opera em Portugal. Mesmo antevendo uma revolução, a história tem sido acusada de se enrolar sobre si mesma e de ter caído numa espiral de aborrecimento e de repetição.

Nas duas temporadas anteriores, o enredo focou-se sobretudo no sistema em torno das servas, as handmaids, mas há agora um vislumbre do poder camuflado e organizado das Marthas (escravas que tratam das lides domésticas nas mansões dos grandes senhores) e dos movimentos de resistência. O ritmo monótono dos três primeiros episódios a que o PÚBLICO assistiu não deixa clara esta revolução profetizada no trailer, a não ser nas acções subentendidas das protagonistas June (Elisabeth Moss) e Serena (Yvonne Strahovski). Ao todo, são 13 episódios, tal como na segunda temporada (na primeira foram dez).

É uma narrativa que se tornou “frustrantemente repetitiva”, descreve a Hollywood Reporter: “Nos primeiros seis episódios (...) há um sentimento de que a série não tem nada de novo para dizer.” Também o Washington Post defende que se tornou difícil para a série encontrar um ritmo que seja simultaneamente “consistente e interessante”, e que ela acaba por cair no poço do aborrecimento. “Os episódios muitas vezes entram no terreno do verdadeiramente enfadonho, dando voltas longas e redundantes em torno da sua premissa original.” Essa premissa é ainda bem visível nas performances dos actores, nas cenas longas e recheadas de close-ups, na história que fica nas entrelinhas.

Apesar das críticas que brotaram ainda durante a exibição da segunda temporada, o sucesso de The Handmaid's Tale​ é incontestável e a Hulu revelou que o número de espectadores duplicou de 2017 para 2018. De resto, há um mérito que não se pode tirar-lhe: foi a primeira série de um serviço de streaming a receber o importante Emmy de Melhor Série Dramática, em 2017.

Um reflexo do que pode vir a ser

Nesta série inspirada no livro homónimo, originalmente publicado em 1985, da escritora canadiana Margaret Atwood, os Estados Unidos como os conhecemos hoje não existem mais: a democracia deu lugar a Gilead, uma teocracia totalitária machista que escraviza as mulheres férteis para que sirvam nas casas dos homens no poder, engravidando-as e arrancando-lhes os filhos recém-nascidos dos braços. Depois de uma queda a pique da taxa de nascimentos saudáveis, deixa de importar o que estas mulheres eram antes: enfermeiras, professoras, investigadoras, escritoras — e até ler é proibido. Neste mundo de “ficção especulativa”, os homossexuais são executados por traição, os cidadãos são espiados, os “criminosos” são enviados para colónias radioactivas de trabalho forçado, as mulheres não têm direitos nem liberdade de expressão e são vítimas de exploração, abuso e de violência. Até a autora do livro considerou que uma das cenas da série era “demasiado perturbadora”, sobretudo por ser um reflexo da própria História. O Canadá continua a salvo da opressão e é para lá que todas tentam fugir.

Sem intervenção internacional, a revolução parte agora de dentro da República de Gilead. Os opositores confiam em aliados poderosos e no que resta de boa vontade alheia para escapar ao sistema de opressão. Mais do que escapar, importa deitá-lo abaixo. Estes resistentes, sobretudo mulheres, tornar-se-ão “pesadelos” — e tem-se dado ainda mais força à expressão “não deixes que os sacanas te deitem abaixo” (nolite te bastardes carborundorum, em latim macarrónico). “Um dia, quando estivermos prontas, vamos caçar-vos. Fiquem à espera”, antevê June, na frase que termina o terceiro episódio.

A terceira temporada continua a ser narrada pela protagonista June — cujo nome de serva passou de Offred a Ofjoseph —, reflectindo-lhe os pensamentos que, à semelhança do que acontece no 1984 de George Orwell e noutras narrativas distópicas, são dos únicos lugares livres num regime de opressão. A meio da temporada, haverá uma visita ao coração do regime – a capital de Gilead, antiga Washington DC democrática –, onde o sistema é ainda mais fundamentalista e as regras ainda mais apertadas. Até o Monumento de Washington foi transformado numa cruz branca gigante. “É Gilead em esteróides”, brinca o produtor-executivo Warren Littlefield.

Nesta terceira temporada (tal como na segunda), o enredo da série produzida por Bruce Miller vai já longe da obra original, que em Portugal teve dois títulos: Crónica de uma Serva e o mais recente A História de uma Serva. Para Setembro está marcado o lançamento da sequela literária que, segundo a autora, hoje com 79 anos, retrata os acontecimentos 15 anos depois da acção temporal do primeiro livro.

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Activistas vestem-se como as servas de The Handmaid's Tale num protesto a favor da legalização do aborto em Buenos Aires, Argentina Marcos Brindicci/REUTERS

Três décadas após a publicação deste romance distópico, a sua história tornou-se um símbolo de resistência feminista, coincidindo também com a chegada ao poder do Presidente norte-americano, Donald Trump, e com o movimento de denúncia #MeToo, integrado na nova vaga de luta pela igualdade de género. Tem sido considerada “mais relevante do que nunca” – para que não se caia, no futuro, nos erros do passado. Tanto que muitas manifestações se têm apropriado das vestes vermelhas das servas da série como símbolo de opressão: viram-se, por exemplo, nos protestos contra a proibição do aborto no estado norte-americano do Alabama, mesmo em casos de violação e incesto.

“Isto não é uma cena de The Handmaid's Tale​. Isto está a acontecer no Alabama, no nosso país, no ano 2019”, comparou a senadora Kamala Harris. Numa entrevista ao jornal britânico The Guardian, também a actriz (e produtora-executiva) Elisabeth Moss deixa as alegorias (do aborto ou da liberalização das armas) de lado: “Isto está a acontecer na vida real. Acordem”.

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