Quando ser sério é um problema

Nas palavras de Manuel Morais, não há nenhuma acusação generalizada e preconceituosa de racismo ou xenofobia. O que ele disse é óbvio e razoavelmente claro.

Manuel Morais, sindicalista da PSP, disse há tempos, comentando o estudo académico Relações das polícias com os jovens dos bairros periféricos, que “há polícias racistas e xenófobos e as organizações nada fazem”. Mais recentemente, numa reportagem televisiva, repetiu: “o que existe na sociedade, na nossa sociedade, e também na polícia, ou melhor, e também nas polícias, é um preconceito; um preconceito étnico”. Acabou por ser forçado a abandonar a direcção da Associação Sindical dos Profissionais de Polícia (ASPP), na sequência de uma petição pública que exigiu a sua demissão. Tomou essa atitude – disse ele depois – para proteger a ASPP de uma provável debandada de sócios.

Foi tudo uma sequência de erros: a petição dos polícias, a demissão de Manuel Morais e a conivência da ASPP, cujo presidente (pessoa que não conheço mas admiro) admitiu não ter sido capaz de não ceder à pressão dos sócios. Se olharmos objectivamente para as palavras de Manuel Morais, não há nenhuma acusação generalizada e preconceituosa de racismo ou xenofobia, feita às instituições policiais ou aos polícias. O que ele disse é óbvio e razoavelmente claro. Com cerca de 20.000 polícias na PSP e 22.000 guardas na GNR, espantoso seria se não se repetissem aí, em proporção pelo menos idêntica, os mesmos preconceitos que existem na nossa sociedade.

Com uma experiência de 22 anos de julgamentos nos concelhos de Almada, Seixal e Setúbal, onde existem bairros com importantes comunidades africanas e ciganas, posso afiançar que na esmagadora maioria das situações que conheci os polícias cumpriram a sua difícil missão com grande zelo profissional e respeito pelos direitos humanos. É claro que também vi pontualmente actuações desviadas e discriminatórias. Isso existe nas polícias como existe, infelizmente, em todo o lado.

Este fenómeno do eventual racismo nas polícias tem de ser estudado a fundo, para se ver a sua verdadeira dimensão e corrigir o que possa estar mal. Só isso trará racionalidade a uma discussão que se alimenta do casuísmo e é inquinada pela leitura demagógica de documentos contraditórios – como apontei aqui no artigo: “A propósito da luta contra a discriminação racial”, de 23/03/2019.

Há tempos, num debate em que participei com Mamadu Bá, dirigente da SOS Racismo, dizia-lhe que para se identificarem e corrigirem eventuais práticas discriminatórias nas polícias é preciso trabalhar em conjunto com as suas estruturas sindicais. Não se pode passar a vida a insultar aos gritos, porque isso só ajuda a alimentar o problema em vez de o resolver. Sugeri-lhe que se houvesse mais moderação no discurso seria mais fácil conjugar esforços com as polícias, centrados num objectivo que é de todos.

Como a mesma legitimidade, posso dizer agora que a atitude dos polícias que pediram a demissão do dirigente sindical Manuel Morais, defensiva na substância e agressiva na forma, também não produz nada de positivo. Ela apenas agrava uma situação que já é suficientemente difícil. A ideia que fica, desta excessiva sensibilidade dos polícias, perante declarações que não tiveram, nem de perto nem de longe, o significado que se lhes quis atribuir, é que reconheceram o problema mas preferiram varrê-lo para baixo do tapete. O que, ironicamente, acaba por ser injusto para todos os polícias, dando às palavras de Manuel Morais um significado e generalização que não tinham. De resto, o texto da petição a pedir a demissão, é ele próprio ambíguo e problemático, quando se refere aos agentes da PSP condenados em primeira instância por agressões e sequestros a um grupo de pessoas negras como “os nossos irmãos de Alfragide”.

Manuel Morais parece ser um polícia sério, responsável e interessado no bem da instituição onde trabalha e dos cidadãos que serve. Não se devia ter demitido e a direcção da ASPP não devia ter aceitado a sua demissão, nem que o preço a pagar fosse perder umas dezenas de sócios. Devia-se sim ter aproveitado a oportunidade para separar o trigo do joio – única maneira de defender todos os polícias sérios e honrados.

Pode compreender-se o contexto e a força das circunstâncias, mas o resultado foi mau porque deu razão a quem a não tinha. Na vida, muitas vezes o mais difícil é fazer o que está certo.

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