As notícias da morte da sua carreira foram muito exageradas: Woody Allen volta a filmar – na Europa

Christoph Waltz, Gina Gershon, Louis Garrel e Elena Anaya serão as suas estrelas, San Sebastián o pano de fundo. O realizador de Annie Hall continua a ser persona non grata em Hollywood, mas a Europa volta a acolhê-lo depois das acusações de abuso sexual da filha, que nega.

Foto
O realizador norte-americano Woody Allen Eric Gaillard/REUTERS

Quando, em Janeiro de 2018, e no auge do fervor de denúncias do movimento #MeToo, o nome de Woody Allen voltou a ser associado ao alegado abuso sexual da sua filha Dylan, o potencial fim da sua carreira passou subitamente a estar em cima da mesa. Um ano e meio depois, um comunicado da produtora MediaPro vem pôr um ponto final na discussão, anunciando que as filmagens do novo filme do realizador, uma comédia romântica passada e rodada em San Sebastián, em Espanha, e que tem protagonistas como Christoph Waltz, Gina Gershon, Louis Garrel e Elena Anaya, começam já em Julho.

O título provisório do filme é Wasp2019. Contará a história de um casal americano que vai ao Festival de Cinema de San Sebastián. “Vêem-se envolvidos na magia do festival e [...] no encanto de Espanha e na fantasia dos filmes. Ela tem um caso com um realizador francês e ele apaixona-se por uma bela mulher espanhola”, descreve a produtora, que trabalha com Allen há 14 anos. O título será co-produzido pela Gravier Films e os detalhes para já conhecidos indiciam um projecto semelhante aos que têm marcado a última parcela da carreira de Allen – filmes passados em cidades que não a sua Nova Iorque e que lhe dão incentivos para filmar através das suas film commissions. Foi assim com Paris (Meia-Noite em Paris), Barcelona (Vicky Cristina Barcelona), Roma (Para Roma com Amor) ou São Francisco (Blue Jasmine). O cineasta recebeu o prémio de carreira no Festival de San Sebastián em 2004 e o prémio de melhor filme do mesmo festival por Vicky Cristina Barcelona, em 2008.

A rodagem decorrerá de 10 de Julho a 23 de Agosto e voltará a contar com o director de fotografia Vittorio Storaro e com o actor Wally Shawn (Os Dias da Rádio, Sombras e Nevoeiro, Manhattan), bem como com nomes como os de Elena Anaya (Mulher Maravilha, Lúcia e o Sexo), Louis Garrel (Os Sonhadores), Gina Gershon (Bound) ou Sergi López (O Labirinto do Fauno) e Cristoph Waltz (Django Libertado, Sacanas sem Lei, Spectre). Nomes que, ao contrário dos de Greta Gerwig, Colin Firth, Timothée Chalamet, Michael Caine ou Rebecca Hall, que prometeram não voltar a trabalhar com Allen, se mostraram disponíveis para filmar com o realizador, apesar do abalo à sua reputação.

“As notícias da minha morte foram muito exageradas” é a batidíssima frase de Mark Twain que se aplica agora à carreira de Woody Allen, cineasta amado e prolífico que no último ano se viu convertido em mais uma figura de Hollywood envolta em acusações de violência e assédio sexual. Allen defrontou-se com uma nova atitude da opinião pública e dos media perante as alegadas vítimas: o momento MeToo, desencadeado pelas acusações sistémicas ao produtor Harvey Weinstein e tantos outros casos, dava-lhes novos ouvidos, nova atenção crítica e novo destaque.

Desde 2014 que Dylan Farrow dizia publicamente ter sido sexualmente agredida pelo pai aos sete anos. Em Outubro de 2017, em pleno fervor #MeToo, perguntava no Los Angeles Times por que nunca a tinham ouvido; em Janeiro de 2018, poucos meses depois da primeira investigação sobre o alegado comportamento predatório de Weinstein, dava a sua primeira entrevista televisiva sobre o tema. O irmão e jornalista Ronan Farrow, autor de uma das investigações basilares sobre Weinstein, juntava a sua voz à de Dylan. Allen voltava a negar as acusações, lembrando que durante a infância de Dylan as acusações foram investigadas e que nada se provou. Meses mais tarde, dizia que ele próprio devia ser um rosto #MeToo.

O seu contrato com a Amazon Studios, que se assumira como a sua distribuidora, caiu por terra, cancelada a estreia norte-americana do filme mais recente do cineasta, A Rainy Day in New York, e Allen processou o gigante tecnológico. A Amazon, por seu turno, alegou que os comentários de Allen sobre o movimento #MeToo “sabotaram” os planos de estreia do filme. Javier Bardem, Diane Keaton, Alec Baldwin ou Anjelica Huston saíram em sua defesa, mas a questão já se levantava: poderia o realizador de 83 anos “voltar a trabalhar em Hollywood?”, perguntava o New York Times; “a carreira de Woody Allen acabou – mas por que é que demorou tanto?”, questionavam-se os críticos do site Indiewire.

Meses depois, Woody Allen estava oficialmente numa pausa – pelo menos segundo os seus parâmetros, visto que nos últimos 44 anos estreou um filme por ano. O seu 50.º filme seria o último? Quis publicar as suas memórias, mas as editoras rejeitaram-no, algo impensável anos antes. Mais tarde, anunciava-se um projecto para 2020, mas nada de concreto se sabia. A vaga #MeToo perdia força global, alguns dos seus visados (e autores confessos de actos impróprios, como Louis C.K., que actuou numa pequena sala em Lisboa há semanas pela primeira vez) tentavam voltar às suas carreiras, os julgamentos de Harvey Weinstein ou Kevin Spacey começavam a preparar-se. Os votos de nunca mais trabalhar com certas figuras baixavam de volume, com o fervor da discussão sobre se Woody Allen é um caso Roman Polanski na carreira e na vida pessoal ou sobre se Dylan Farrow terá sido manipulada pela mãe, Mia Farrow, a diminuirem.

Agora, pelo menos algumas respostas parecem perfilar-se: a carreira de Woody Allen não acabou, com o 51.º filme em pré-produção, mas continua a ser-lhe difícil trabalhar em Hollywood – o New York Times confirma esta quarta-feira que “Allen se tornou persona non grata em Hollywood” –, pelo que se voltou para um elenco maioritariamente europeu e uma produção também europeia. Mantém-se ainda uma incógnita, se o futuro filme será distribuído nos EUA e se estas notícias do regresso de Allen gerarão controvérsia pública comparável à de 2018.

Sugerir correcção
Ler 2 comentários