Por causa de um eclipse

A 29 de maio de 2019 celebraram-se os cem anos de observações realizadas durante um eclipse total do Sol, cujos resultados ajudaram a validar a teoria da relatividade geral de Einstein. A experiência foi bicéfala, em Sobral (Brasil) e na ilha do Príncipe, em São Tomé e Príncipe. A propósito dessa efeméride fui convidado pelo Ciência Viva a fazer uma obra de divulgação em banda desenhada, lançada, precisamente, na ilha do Príncipe, parte de um conjunto alargado de iniciativas para comemorar o evento. Foi uma experiência tão excelente quanto marcante, mas estimulou também algumas reflexões sobre como encarar a divulgação de ciência num contexto de cooperação, muito diferente daquele a que estava habituado.

Desde logo: não sou físico, o meu interesse no projeto foi mais a linguagem da BD e a comunicação de ciência, não a ciência concreta em si. Respeito quem faz carreira com este evento específico de 1919, mas essa não é a minha praia, e o livro é também um registo do meu (des)conhecimento, o que certamente explica os erros cometidos, que assumo, até porque não afetam a mensagem essencial. Por outro lado, sei muito pouco sobre cooperação (fora relatos em segunda mão, leituras diversas, e outra experiência na Jordânia), e quase nada sobre África. Escrevo, pois, numa condição de triplo desconhecimento, o que sugere que deveria seguir o conselho de Wittgenstein, e estar calado. No entanto, há situações em que um desconhecimento inicial até pode ser vantajoso, sobretudo se encontramos no desconhecido caraterísticas infelizmente bem conhecidas.

Por favor não se presuma à partida que o que eventualmente correu menos bem neste projeto era expectável devido ao local; seria uma desconsideração tremenda ao trabalho inexcedível dos são-tomenses envolvidos, dos mais altos responsáveis aos mais humildes. Não conheço o Sobral (outro desconhecimento...), mas, considerando as condições difíceis (até em comparação com São Tomé) não é difícil prever a importância deste evento, e o seu potencial futuro para a ilha do Príncipe, a par da sua esplendorosa biodiversidade.

Foto
Livro de BD As Luzes do Príncipe, de João Ramalho-Santos (texto) e Rui Tavares (ilustração)

No Príncipe encontrei alunos e professores que transcendiam limitações com um entusiasmo pelo conhecimento que muitos em Portugal sonham estimular em colegas e estudantes. Encontrei em todo o lado (mercados, restaurantes, hotéis, roças, ruas, campos) pessoas que queriam perceber melhor por que motivo a sua ilha era famosa. Foi um prazer distribuir o livro que trouxemos em malas a abarrotar, e ainda mais quando muitos vieram agradecer após a leitura, ou aprofundar questões. Mas o livro foi feito por mim (e pelo Rui Tavares) com bases nos meus desconhecimentos, não nos daquele público-alvo, que só conheci a posteriori. Procurei uma linguagem o mais simples possível, mas só uma avaliação posterior de impacto poderia dizer se fomos bem-sucedidos. Pelo menos fizemos o esforço de tentar interagir com alunos e professores de São Tomé, chegar aos habitantes do Príncipe. Algo que não sucedeu em muitas iniciativas paralelas a que pude assistir, e nas quais a falta de coordenação foi também evidente. E não estou, mais uma vez, a questionar o esforço de todos os envolvidos.

Sendo investigador sei quão grande é a tentação de um discurso hiperespecializado, bem como a viciação em “prestígio”, ou a vontade hipnótica de nos ouvirmos a nós mesmos. Só que tentar replicar eventos e fórmulas que fazem imenso sentido no seio da academia, com tópicos e temas (do modo como foram apresentados) de pouco ou nenhum interesse local, não faz sentido, e só ajuda a desbaratar uma grande oportunidade. Sobretudo se decorrerem em roças remodeladas a tender para a assepsia do turismo seleto de alto nível, onde os únicos locais são os trabalhadores (e mesmo assim), e os intervenientes são os já convertidos, que se revezam entre o púlpito e a plateia. Atenção: nada contra a valorização sustentável da agricultura e do turismo na ilha do Príncipe, pelo contrário. Mas para que a comunicação de ciência que se destine a um público alargado são precisas outras estratégias para que esta seja verdadeiramente útil. Fora duas ou três intervenções interessantes, porque enquadradas naquela realidade ou facilmente extensíveis (de figuras locais ou de investigadores de Moçambique e Cabo Verde, por exemplo), a maioria poderia ter tido lugar (mais apropriadamente e com menos custos) em auditórios de Madrid, Estocolmo ou Nova Iorque.

Dir-se-á que “antes feito que perfeito”; e que tudo começa com boa vontade. Certíssimo. Boa vontade é excelente, mas pouco útil a longo prazo, mesmo com estruturas inauguradas no terreno, se não for potenciada com iniciativas sustentadas e planos de atividades concretos que façam sentido no contexto em que decorrem, não enquanto réplica de outra realidade na qual projetamos as nossas próprias expetativas. Adaptar a mensagem ao público (que tem obviamente de se definir e conhecer) é a primeira condição da comunicação de ciência, muito diferente se for feita para cientistas, curiosos com alguma formação, ou diferentes tipos de público em geral, em diferentes contextos.

Boa vontade é aproveitar o trabalho de facto magnífico (só vendo ao vivo num contexto como este se aprecia a sua dimensão) do Presidente da República (para todos, qualquer que fosse a sua nacionalidade, “O Marcelo”). Mas seria bom usá-lo (no bom sentido) como impulso para algo mais consistente, que sirva a comunidade. De modo a que numas próximas comemorações possam ser são-tomenses da ilha do Príncipe a explicar ao mais alto nível a ciência por detrás do eclipse, porque já foram, eles próprios enquanto investigadores, além dessa mesma ciência. Com palestras, BD, canções, uma versão do Auto de Floripes, ou o que quiserem, que possa transmitir aos seus concidadãos o poder transformativo que uma visão científica pode ter. E, para isso acontecer, a própria sociedade teve de evoluir, porque a Excelência só pode surgir num contexto Muito Bom. Caso contrário é tudo “leve-leve”, mais vale bebermos uma cerveja Rosema na esplanada do Fofokices, ao pé do banco da má-língua, em Santo António; darmos umas larachas com ar profundo, sentirmo-nos realizados. Depois cada um paga o seu, e vai à sua vida.

O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico

Sugerir correcção
Comentar