Os meus irmãos

Não é fácil lembrar esse tempo tão cheio, em que tudo parecia andar mais devagar do que hoje. E numa grande família as lembranças multiplicam-se.

Neste 31 de maio, Dia dos Irmãos de 2019, falo de uma fraternidade de muitas aventuras, de mil cumplicidades e de uma conversa constante – uma experiência inesgotável de memórias e de amizades.

Com o Francisco e o Afonso, a primeiríssima referência que nos une foram os nossos pais, que sempre nos acompanharam e que criaram um clã fantástico. Os pais foram os nossos primeiros educadores e companheiros. Muito do que somos devemos a essa extraordinária presença. E a casa foi sempre o porto de abrigo, o lugar de encontro e de aprendizagem, a oportunidade de renovar energias.

Em fins-de-semana chuvosos, fazíamos concursos de desenho, graças à mestria de nosso pai, e nesse confronto o meu irmão Francisco sempre se destacou, apesar de o Afonso se bater bem. Eu ficava-me pela caricatura… Havia ainda complexas construções de gruas e maquinarias feitas com o Meccano, a coleção de miniaturas de automóveis Dinky Toys e Corgi Toys, a disputada leitura, a começar nas “histórias de quadradinhos” e a continuar em tudo o que nos vinha à mão… E sempre muitos desenhos, historietas, automóveis, garatujas, caricaturas... Às vezes, no final de uma lição de conversação de línguas, à tarde, o que resultava era a caricatura da professora com um gorro inesquecível.

Quanto a museus e exposições, tínhamos um programa intensíssimo – conhecíamos de cor os diversos coches e a sua identificação, mas também as salas do Museu de Arte Antiga, no tempo do dr. João Couto, ou do Museu de Arte Contemporânea, e a coleção Gulbenkian, pelo menos desde Oeiras. Não esquecemos o dia em que fomos ao ateliê de Domingos Rebelo no pátio dos artistas ou os serões em que ouvíamos Manuel Pedro Rio-Carvalho.

Em determinada altura, o Francisco encarregou-se de desmanchar um despertador vermelho. Num primeiro momento, os pais repreenderam-no, até ao momento em que ele lá conseguiu, peça por peça, reconstruir a maquineta sem partir a corda. E no final, ufano, perante a serenidade paterna, afirmou: “Já repararam que o som até ficou melhor?” Devo dizer que essas aventuras culminaram com estranhas operações a pássaros e rãs, sempre com razoável sucesso. Naturalmente que tudo foi dar ao curso de Medicina e à tomada de posse das velhas placas que o nosso bisavô tinha nas portas de casa e do consultório: médico-cirurgião.

Não esqueço ainda os nossos jornais, reproduzidos a papel químico, que serviam para alimentar os nossos mealheiros, bem como algumas récitas teatrais e conferências comemorativas. O Afonso era o mais novo, mas não ficava atrás e participava em todas as atividades. Às escondidas, fumou muito cedo, até que pediu ao avô que o nomeasse acendedor-mor. A pouco e pouco, foi optando por seguir, como eu, os passos dos nossos tios advogados…

Nas férias algarvias, fazíamos grandes cavalgadas com um pobre macho, às vezes muito teimoso, mas igualmente garboso quando o fazíamos galopar a toda a sela, para admiração geral… Trinta por uma linha era o que fazíamos nesse tempo algarvio – campo, praia, passeatas por montes e vales, descobertas inverosímeis.

E se era verdade que nunca nos faltavam atividades mesmo em férias, o certo é que tínhamos programas de estudo intensivos – já que a mãe era imbatível na matemática e nas ciências; e as complexas regras gramaticais também não lhe apresentavam dificuldades. Já quanto à mitologia grega e romana, à história da Arte, à escrita e ao desenho, o pai era o especialista.

Não é fácil lembrar esse tempo tão cheio, em que tudo parecia andar mais devagar do que hoje. E numa grande família as lembranças multiplicam-se. A vida foi mudando. A irmandade alargou-se com o mesmo espírito. Eu casei, vieram os filhos. O Francisco, já médico, foi para a periferia. O Afonso terminou o curso. E nunca mais deixámos o imaginário dessas aventuras inolvidáveis.

Amanhã, é Dia dos Irmãos, carregado de memórias.

O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico

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