A arte de conversar perdeu-se

Ao desmantelar a dicotomia capitalismo e comunismo clássico, Zizek poderia ter antagonizado Peterson. Em vez disso estabeleceu um campo comum de discussão. Resultado? Os dois foram unânimes em várias críticas ao capitalismo actual, discutindo de forma escorreita. Claro que discordaram, mas de forma cordata.

É das coisas mais saborosas. Uma conversa ou debate enriquecedores. Abrirmo-nos, estabelecer confiança, falando sobre questões biográficas ou sociais, deixando ir o tempo, comunicando de forma viva mas serena, sabendo ouvir, coincidindo ou divergindo, tentando compreender, num diálogo transformador. Parecem existir cada vez menos momentos desses. A maioria das interacções humanas é dominada pela conversa de elevador, de consultório, de táxi, de festa, de lugares sociais. Os diálogos intensos a dois são oásis cercados pelo oceano anódino, fugaz ou retórico.

Conversar é arte. Saber escutar, sabedoria. Infelizmente impera o ruído normalizador. Toda a gente grita por atenção. Ou então, o que vai dar ao mesmo, só se escuta o que já estamos predispostos para ouvir. Não se dialoga verdadeiramente. No espaço público, então, seja nas TVs, redes sociais ou rua, a sensação é que se combate, não se debate, potenciando-se as emoções mais básicas, as actuações estridentes e não as reflexivas.

Há semanas houve um exemplo da forma como esse ambiente impera. Em Portugal deu-se pouco por isso, mas em Toronto, no Canadá, com transmissão via internet, encontraram-se dois dos pensadores mais mediáticos do nosso tempo: o psicólogo canadiano Jordan Peterson, que se tornou numa celebridade por proposições contra o “politicamente correcto” — seja lá o que isso for — e o filósofo esloveno Slavoj Zizek, com vasta produção teórica, aplicada na desconstrução do mundo ideológico.

O encontro tinha tudo para ser desastroso, anunciado com estrondo como o “debate do século”, à volta de um tema insondável (Felicidade: capitalismo contra marxismo), e com um ambiente de circo a rodeá-lo, com entusiastas a puxarem pelos antagonistas, que representariam dicotomias impermeáveis. Felizmente, às vezes, as surpresas acontecem.

Não só o ambiente bélico foi superado, como existiu um diálogo produtivo. Peterson ainda foi esquemático inicialmente, recuando ao passado para colocar capitalismo, democracia e prosperidade de um lado, e do outro marxismo, autoritarismo e estagnação económica. Mas Zizek foi desarmante, colocando-se no presente, mostrando com o exemplo chinês que tudo o que fora dito está hoje baralhado. Há uma nova ordem, onde autoritarismo pode coincidir com capitalismo e quanto menos democrático um estado for mais produtivo pode ser. O modo de produção capitalista não é dissociável de um estado autoritário, pondo em causa ambiente, direitos, garantias e liberdades, e esse é o problema.

Ao desmantelar a dicotomia capitalismo e comunismo clássico, Zizek poderia ter antagonizado Peterson. Em vez disso estabeleceu um campo comum de discussão. Resultado? Os dois foram unânimes em várias críticas ao capitalismo actual, discutindo de forma escorreita. Claro que discordaram, mas de forma cordata. Não houve sangue e isso confundiu a imprensa, como se percebeu quando abordaram as causas identitárias (racismo, sexo, género) que dominam os debates públicos. Os dois são críticos, mas de forma diferente. Para Peterson o problema do “politicamente correcto” é que supostamente perverte as hierarquias de competência que ordenam o mundo, enquanto para Zizek é uma questão de foco — existem hierarquias socioeconómicas mais abrangentes que requerem atenção. Peterson ataca pela direita, Zizek pela esquerda.

No final sentiu-se desilusão entre a imprensa. Não tinha havido um vencedor claro. Claro que não. Zizek mostrou que existem hoje formas de pensar a realidade que não se enquadram nas posições a preto-e-branco que nos são apresentadas. No final concordaram que é preciso ouvir e falarmos mais uns com os outros. Não nos refugiarmos nas trincheiras das nossas certezas. Estarmos disponíveis para conversar realmente.

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