Cannes dá Palma de Ouro a Bong Joon-ho e lança dois novos cineastas

Um filme de género para mostrar a luta entre ricos e pobres venceu o prémio máximo de Cannes. Mas a declaração mais vibrante da 72ª edição de um festival frequentemente acusado de estar ocupado pelos “habituais” é a de revelar dois nomes, Mati Diop e Ladj Ly.

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Bong Joon-Ho recebeu o prémio máximo no Festival de Cannes Reuters/STEPHANE MAHE
Honra Swinton Byrne
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Parasite, de Bong Joon-Ho. recebeu a Palma de Ouro
2019 Festival de Cannes
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Atlantique, de Mati Diop, primeira londa de uma cineasta francesa de origem senegalesa
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Sylvester Stallone depois de entregar o prémio a Mati Diop LUSA/SEBASTIEN NOGIER
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Les Misérables, de Ladj Ly, o regresso ao "filme de banlieu"
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Antonio Banderas e a glória LUSA/IAN LANGSDON

A Palma de Ouro foi para a Coreia do Sul com Parasite, de Bong Joon-ho. O que acontece quando os ricos e pobres colidem? Uma “boneca russa” de géneros, do thriller ao terror, com os comics como fantasma e o filme de comentário social que também não se esconde. É um retrato da sociedade contemporânea, a impossibilidade de coabitação entre ricos e pobres, com o sentido lúdico de um blockbuster. E a crueldade habitual de Bong Joon-Ho.

Uma relação curiosa pode estabelecer-se com a anterior Palma de Ouro de Cannes, Shoplifters: Uma Família de Pequenos Ladrões, do japonês Hirokazu Kore-eda, com as suas personagens “invisíveis”, mundo oculto, sem direito a participar na sociedade a não ser parasitando-a. É uma zona de contacto; mas depois não há doçura alguma no filme do sul-coreano.

Presença regular em Cannes, desde The Host – A Criatura, em 2006 na Quinzena dos Realizadores, e depois com Okja, na competição de 2017, Bong Joon-ho arrecada a primeira Palma de Ouro para a Coreia do Sul.

Tinha sido “anunciado”. Desde que foi exibido para a imprensa, na primeira semana do festival, foi considerado que podia ser o gosto de uma personalidade como o presidente do júri, o mexicano Alejandro González Iñárritu – alguém que nos seus filmes procura aliar o espectáculo ao “tema”. É um vício este, o de fazer depender um palmarés daquilo que se julga saber sobre o presidente do júri. Esta, aliás, foi uma decisão “por unanimidade”. Mas o mais importante é o facto de o júri ter revelado, de entre uma selecção de 21 filmes com nomes “icónicos” (os Darnenne, Loach, Tarantino, Malick…), como Iñárritu sublinhou na cerimónia deste sábado, os que apareciam ali pela primeira vez. Os que chegaram, vindos de um percurso fora do habitual. A 72.ª edição de um festival que nos últimos anos era frequentemente acusada de estar sempre ocupada pelos “habituais”, faz o seu statement mais vibrante ao revelar dois novos cineastas, Mati Diop e Ladj Ly.

A primeira, uma das quatro cineastas em concurso e também uma estreia, como foi várias vezes referido, para uma “cineasta mestiça” em Cannes, recebeu o importantíssimo Grande Prémio do Júri para Atlantique. O segundo, Prémio do Júri por Les Misérables, disse que esta é a prova de que é possível: não passar por uma escola de cinema e receber um prémio destes no mais importante festival do mundo. Os dois agradeceram ao director artístico Thierry Frémaux, que também ganha. O júri permite-lhe dar uma resposta à concorrência que o Festival de Veneza vem querendo fazer. Querem os filmes dos Óscares? Então Cannes fica com os temas da actualidade, o espectáculo, os nomes de amanhã e o seu epanouissement.

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Bong Joon-ho, Catherine Deneuve, Alejandro González Iñárritu, Ladj Ly, Emily Beecham e Antonio Banderas

Ladj Ly tem 38 anos, a viver e documentar, em curtas e documentários para a internet, a vida no seu bairro de Montferneil, subúrbio de Paris, que em 2005 foi um dos palcos da revolta de uma população de ascendência africana e norte africana na pobreza. Foi nesse bairro que Victor Hugo escreveu Les Misérables. O filme quer dizer que cem anos depois nada mudou. Ladj Ly repetiu-o ao receber o prémio por um filme que reinveste no “cinema de banlieu” como urgência e denúncia embora não faça nada de novo com ele: dedicou-o a “todos os miseráveis de França” (um espelho da dedicatória dos brasileiros Kleber Mendonça Filho e Juliano Dornelles ao receberem o mesmo prémio, ex-aequo, por Bacurau: está dedicado a todos os trabalhadores e trabalhadoras do Brasil, da ciência, da educação, da cultura).

Mati Diop tem 36 anos. O lírico e destemido Atlantique é talvez o filme mais bonito de todo o palmarés. Filha de uma francesa e de um senegalês, ocasionalmente actriz, tem desejado com o cinema resgatar a sua ascendência africana. E resgata aqui histórias da emigração clandestina, dos que partem de Dakar à procura de condições de vida (e morrem na travessia) e dos que ficam. É também uma história de “miseráveis”. É um filme de género: zombies, provavelmente. Que se entrega à escuridão e ao mar. É uma eclosão, floresce uma cineasta delicadíssima.

Com uma “narrativa” destas a impor-se no concurso – “filmes de género” a falar do mundo – haveria ainda espaço para Le Jeune Ahmed, de Jean-Pierre e Luc Dardenne, oitava participação em Cannes dos irmãos belgas que agora juntam um Prémio de Realização a duas Palmas de Ouro (e a um prémio de argumento, a um Grand Prix e até a um prémio de interpretação para actor). O “género”, aqui, é o “género Dardenne”. A que regressam para voltarem a uma energia inicial que tinha sido banalizada quando tentaram aplicar a vocação documental do seu cinema a estrelas como Marion Cotillard ou Cecile de France. O resultado foi artificial. Não é o caso de Le Jeune Ahmed, em que apanham em movimento uma personagem dos extremismos religiosos e dos populismos identitários de hoje. Mas é um objecto bem mais brando que o inesquecível Rosetta (a primeira Palma de Ouro dos belgas, em 1999).

Houve espaço para eles, dizíamos, mas esta narrativa preparava-se para excluir o confessionalismo de Pedro Almodóvar, cineasta que em 1999, quando Tudo sobre a Minha Mãe era dado como favorito para a Palma, levou um empurrão de Rosetta e de outros proletários que invadiram nesse ano a Croisette e recebeu “apenas” o prémio de realização. Ainda não foi com Dolor y Gloria que Pedro chegou à glória da Palma, mas a glória chegou a Antonio Banderas, 40 anos depois de tudo ter começado entre eles (oito filmes juntos). Com Antonio a fazer de Pedro, em cenários (a casa da personagem de um realizador, Salvador) que reproduzem o cenário de Pedro, o arisco e reservado Almodóvar mostra-se escondendo-se no encantamento da ficção. Atreve-se a esse encontro introspectivo com os seus fantasmas e escolhe o “seu” actor que, a chegar aos 60 anos e depois de um ataque cardíaco há dois anos, está também em momento de redescoberta pessoal, a reavaliar o que lhe sobra depois de ter andado a fazer de latin lover em Hollywood. Um dos momentos mais comoventes da noite do palmarés de Cannes: Banderas recebendo o prémio como um voto para mais 40 anos, a dizer que ainda lhe sobra muito​.

É o mais importante festival de cinema do mundo. A 72.ª edição reafirmou-o. Elia Suleyman, o palestiniano que recebeu uma Menção Especial por It Must Be Heaven, périplo silencioso e melancólico de um cineasta que reencontra em Paris e em Nova Iorque o controlo securitário e a mesma tensão da coabitação da Palestina a que quisera escapar, considera que é “o melhor lugar para um filme.” Até ele, um errante estrangeiro em terras iguais, cujo cinema resiste à normalização, dizia à entrada do Palais Lumière: “é melhor estar dentro do que estar fora”.

Palma de Ouro - Parasite, de Bong Joon Ho

Grande Prémio do Júri - Atlantiques, de Mati Diop

Prémio de Interpretação Masculina - Antonio Banderas, por​ Dolor y Gloria, de Pedro Almodóvar

Prémio do Júri - Ex aequo para Les Miserables, de Ladj Ly, e para Bacurau, de Kleber Mendonça Filho e Juliano Darnelles​

Prémio de Interpretação Feminina - Emily Beachmanpor Little Joe, de Jessica Hausner

Prémio de Argumento - Céline Sciamma, por Portrait de la Jeune fille en feu

Prémio de Realização - Jean-Pierre e Luc Dardenne, por Le Jeune Ahmed

Menção Especial - It Must Be Heaven, de Elia Suleiman

Presidido por Alejandro González Iñárritu, o júri desta 72.ª edição era constituído pelo autor de BD Enki Bilal, pelos realizadores Robin Campillo, Maimouna N'Diaye, Yorgos Lanthimos, Paweł Pawlikowski, Kelly Reichardt e Alice Rohrwacher, e pela actriz Elle Fanning.

A Câmara de Ouro, prémio para uma primeira obra (um júri diferente, presidido por Rithy Pahn), que tenha sido exibida em qualquer secção do festival, foi atribuída a Nuestras Madres, de César Díaz, filme apresentado na secção da Semana da Crítica. Díaz é assim considerado a promessa de um cineasta de amanhã.

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