Campanha tenta evitar exportação do exemplar de Lady Chatterley usado em tribunal

PEN inglês lançou operação de crowdfunding para comprar e manter no país o exemplar de O Amante de Lady Chatterley usado e anotado pelo juiz no processo por obscenidade que o romance de D. H. Lawrence enfrentou em 1960.

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Primeira página da edição de 2 de Novembro do Evening Standard noticiando que o tribunal decidira que o romance de Lawrence não era obsceno DR

A vitória judicial da editora Penguin no processo que lhe foi movido em 1960 por ter publicado nesse ano a primeira edição integral e não expurgada de O Amante de Lady Chatterley a aparecer no Reino Unido é hoje considerada um marco no combate pela liberdade de expressão. Foi por isso com alguma comoção que os meios culturais ingleses receberam a notícia de que o exemplar do romance de D. H. Lawrence usado em tribunal, extensamente anotado pelo juiz, fora vendido em leilão por 56.250 libras (cerca de 75 mil euros), no final de Outubro de 2018, a um licitador anónimo que não reside no Reino Unido. O PEN inglês lançou agora uma campanha de angariação de fundos para tentar adquirir o livro e mantê-lo no país.

O Governo britânico impôs ao livro uma proibição temporária de exportação, mas até agora não surgiu nenhuma instituição pública ou comprador particular disposto a igualar o preço atingido em leilão. A colecta lançada pelo PEN, associação que teve em D. H. Lawrence um destacado membro, ainda só tinha reunido nesta sexta-feira ao final da tarde um pouco mais de 17 mil libras, com a própria Penguin a avançar dez mil libras e os herdeiros do poeta e ensaísta T. S. Eliot a contribuírem com cinco mil. Em 1960, Eliot, que a acusação tentara arregimentar, não compareceu em tribunal, mas escreveu uma carta a afirmar que não considerava o romance obsceno e que encarava a sua eventual supressão como um acto “deplorável”.

Sublinhando a importância simbólica deste exemplar anotado pelo juiz Laurence Byrne — que ao longo do processo o levou diariamente consigo, num saquinho tricotado pela mulher, para o célebre tribunal criminal londrino conhecido como Old Bailey —, o PEN justifica a campanha de angariação de fundos que lançou na Internet com a convicção de que se trata de “uma peça histórica única, que deve permanecer no Reino Unido, acessível ao público, para que este compreenda o que se perde quando não há liberdade de expressão”.

A importância de que se revestiu o processo por obscenidade contra a Penguin na liberalização da sociedade britânica é na verdade tão consensualmente reconhecida que, mesmo tendo em conta que este exemplar do romance atingiu em leilão um valor cinco vezes superior ao estimado, o que surpreende é que não esteja ainda afastada a possibilidade de que venha a sair do país.

Narração do relacionamento afectivo e sexual mantido pela aristocrata Constance Chatterley com Mellors, couteiro do seu marido inválido, o último romance de Lawrence, publicado em várias versões, teve a sua primeira edição em 1928, em Florença, numa tiragem cujos 1500 exemplares ostentavam na capa a indicação de que se tratava de uma “edição privada”. No Reino Unido e nos Estados Unidos publicaram-se versões fortemente expurgadas das descrições sexuais mais explícitas e do abundante emprego de palavrões que marcava o manuscrito original.

O escritor já morrera havia três décadas, em 1930, quando Allen Lane, fundador e director da Penguin, decidiu publicar em 1960 a primeira edição integral inglesa. Animava-o o facto de no ano anterior um tribunal americano ter autorizado uma edição semelhante nos Estados Unidos e a circunstância de a própria legislação britânica relativa a “publicações obscenas” ter então sido reavaliada pelo Parlamento, que a dotou de um preâmbulo que reconhecia a distinção entre a literatura e a pornografia, propondo-se proteger a primeira e reprimir a segunda. Mas a jurisprudência estabelecida no processo contra a Penguin viria a revelar-se decisiva para uma interpretação mais liberal da nova lei.

Ficcionalizado em 2006 numa série da BBC, The Chatterley Affair, o processo judicial, que decorreu entre 20 de Outubro e 2 de Novembro de 1960, teve grande repercussão pública, com vários escritores e académicos conhecidos, incluindo o romancista E. M. Forster, a testemunharem em tribunal.

A acusação ficou a cargo de Mervyn Griffith-Jones, que reconheceu o talento de Lawrence, mas acusou o romance em causa de “pôr a promiscuidade num pedestal”. Chamando a atenção para as muitas cenas de sexo explícito, argumentou que o herói e a heroína do livro mal existiam, salvo enquanto corpos, e divertiu o tribunal com uma minuciosa contabilidade das ocorrências de palavrões de natureza sexual, com particular incidência em “fuck” e seus derivados, e na palavra “cunt”, calão para vagina.

No seu testemunho, Forster evocou o seu relacionamento pessoal com D. H. Lawrence e afirmou que o colocava em “altíssima posição” na “grande corrente puritana” da literatura inglesa, algures entre John Bunyan, autor da alegoria cristã seiscentista Pilgrim’s Progress, e William Blake.

No dia 2 de Novembro, após ter estado três horas reunido, o júri chegou a um veredicto unânime e considerou a Penguin (e por consequência o próprio romance) inocente das acusações de obscenidade. A editora já distribuíra alguns exemplares oferecidos, que estiveram na base da acusação de obscenidade, mas o livro só chegaria às livrarias cerca de um mês após a decisão judicial. A primeira edição, de 200 mil exemplares, vendeu-se num só dia. A segunda, publicada em 1961, trazia uma nota editorial que lembrava o processo e concluía: “Esta edição é dedicada aos doze jurados, três mulheres e nove homens, que trouxeram um veredicto de ‘inocente’ e assim tornaram o último romance de D. H. Lawrence acessível pela primeira vez ao público no Reino Unido.”

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