A guerra Irão-Iraque (não) é uma brincadeira para meninos

Até domingo, Marjan Poorgholamhossein apresenta no Teatro Nacional D. Maria II, em Lisboa, Flight No. 745, comovente viagem a uma infância assombrada por sirenes e bombardeamentos.

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NOGOL TAHERI

Estava frio no avião e Marjan Poorgholamhossein tapou-se com um cobertor. Como a luz estava a incomodá-la, baixou a persiana da janela e esticou a mão para desligar o interruptor por cima do seu assento. Mas, sem se levantar, os dedos não chegavam lá. Simpaticamente, o homem sentado a seu lado ofereceu-se para a ajudar e quando Marjan se virou para lhe agradecer estava de volta ao Irão da sua infância, ao Beco Bahar, numas férias de Ano Novo. Flight No. 745, espectáculo que a criadora iraniana apresenta no Teatro Nacional D. Maria II, em Lisboa, desta sexta até domingo, no âmbito do Festival Internacional de Marionetas e Formas Animadas (FIMFA), viaja constantemente entre presente e passado, entre aquele voo e as memórias de uma infância vivida enquanto decorria a guerra entre o Irão e o Iraque (1980-1990).

A história de Flight No. 745 é tanto a de Marjan quanto a de qualquer iraniano da sua geração. É tanto a sua, que nasceu e viveu até aos oito anos com uma banda sonora de sirenes e bombardeamentos, quanto a do seu irmão, que fugiu do Irão para escapar ao serviço militar e à obrigatória integração num qualquer pelotão. Esse regresso a casa de que é feito o espectáculo espelha, aliás, o reencontro do seu irmão com o país, com a cidade de Isfahan, com as ruas, as pessoas da terra e a família. “Ele fugiu aos 17 e durante dez anos não pôde voltar”, conta a directora do Pouppe Theatre ao PÚBLICO. “Deixou-nos quando eu tinha quatro anos e era ainda uma criança gorduchinha e querida, e quando voltou já era uma adolescente zangada.” Desse reencontro, a artista lembra sobretudo um rapaz “chocado porque tudo tinha mudado” e que “sentiu que já não pertencia àquela cidade e àquele país”.

Flight No. 745 vive muito desse estranhamento de uma paisagem familiar. Algo que, hoje, também a criadora – que se mudou para Teerão aos 18 anos para prosseguir os seus estudos na universidade – sente nas cinco ou seis vezes por ano que passa por Isfahan para visitar os pais. “No final dos anos 80, tudo mudava muito lentamente e conseguíamos observar, gozar ou odiar as transformações. Mas agora não, tudo muda a cada cinco segundos e, num certo sentido, é um pouco deprimente”, afirma.

Transportada constantemente para o passado em situações como aquela que dá início à peça, Marjan Poorgholamhossein acredita que esta narrativa é semelhante à de tantas outras pessoas que “viveram as suas infâncias em tempo de guerra”. E que, por isso, aprenderam a habitar quase em simultâneo entre dois mundos – um feito de fantasia, beleza e inocência, próprio da idade, e um outro agressivo e excessivamente real. Antes de sair para a escola, lembra a autora e intérprete do espectáculo, era habitual ouvir notícias sobre família e amigos que tinham perdido perdido alguém em ataques. “Mas tive muita sorte”, diz, “porque todas as noites tínhamos uma cerimónia que consistia em escondermo-nos no abrigo, quando soavam os alarmes de bombardeamento, e os meus pais e outros vizinhos transformavam esse momento numa brincadeira”. Mesmo que as bombas rebentassem ali ao lado e os pais estivessem tomados pelo medo, o momento era de uma quase irreal diversão.

A normalização do horror

O cruzamento entre essas duas vidas aconteceria também noutro momento fundamental para Marjan Poorgholamhossein. Quando uma companhia de teatro visitou Isfahan para apresentar um espectáculo de marionetas e se deslocou ao seu jardim-de-infância, o alarme soou mais uma vez e os miúdos foram apanhados numa situação em que pouco podiam fazer para se proteger. Os marionetistas trataram então de encenar um conto popular em que miúdos e adultos uniam esforços para tentar arrancar um objecto preso ao solo. “Lembro-me que nos alinhámos todos e cantámos a canção que acompanha essa história durante 15 minutos, enquanto eles esperavam o bombardeamento”, conta. “E essa foi a magia das marionetas – como elas transformaram uma situação aterradora em algo muito divertido para as crianças.”

Esse é outro ponto em que Flight No. 745 acaba também por tocar: a normalização do horror e da violência. No espectáculo, o sr. Jafiri pouco se incomoda com o som das bombas que rebentam mesmo ali ao lado. Marjan testemunhou esse fenómeno “dois ou três anos depois do início da guerra, quando tudo erra horrível, as coisas se tornavam rotineiras”: o alarme soava, todos corriam para o abrigo em modo automático, sentavam-se, esperavam que passasse e regressavam às suas vidas. “É terrível, mas lembro-me até de pessoas que nem se mexiam e continuavam a ler o jornal”, recorda com a voz tremente. O mesmo estado de “choro por dentro” em que diz encontrar-se em cada apresentação de Flight No. 745. O mesmo estado em que se encontra quando os canais de notícias repetem, por estes dias, o subir de tom nas ameaças entre os governantes do seu país e dos Estados Unidos.

Para Marjan, Flight No. 745 só pode ser um espectáculo sobre o passado. Em momento algum admite pensar que pode antever também o futuro.

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