Fez-se luz na competição de Cannes: Arnaud Desplechin e Abdellatif Kechiche

Perto do final, o concurso da 72.ª edição do festival iluminou-se e ficou vibrante. Roubaix, une lumière, de Arnaud Desplechin, e Mektoub My Love: Intermezzo, de Abdellatif Kechiche: um policial com polícias e assassinas em território sagrado e uma noite de sexo na discoteca.

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Léa Seydoux em Roubaix, une lumière Shanna Besson/Why Not Productions

Arnaud Desplechin como nunca o víramos? Dedicado agora ao real – os afazeres de uma esquadra de polícia numa cidade do Norte de França – e sem os fantasmas do romanesco?

Havendo sinais de ruptura, Roubaix, une lumière, o filme com que compete na 72.ª edição do Festival de Cannes, continua a ser tocado pelo biográfico. Roubaix é a cidade natal do cineasta, onde, e ele não o esqueceu, em 2002 se tornou mediático o caso de duas raparigas, alcoólicas, amantes, que na noite de Natal assassinaram por um motivo trivial uma idosa.

Depois, o “policial” faz-se aqui lamento, grito na noite por uma cidade socialmente deprimida e esquecida. Não se está assim tão longe, se calhar, do onirismo e dos fantasmas de Comment je me suis disputé...(ma vie sexuelle), filme de 1996.

O que é “novo”, talvez, é a intensidade da luz deste Desplechin decidido, após uma série de filmes, altos e baixos, que trabalhavam a partir da crise e da impossível fuga. O que se segue não é nada consensual: Roubaix, une lumière é a coisa mais comovente que surgiu nesta competição. Por “culpa” de quatro personagens, dois polícias, interpretados por Roschdy Zem e Antoine Reinartz, e o casal de assassinas, Léa Seydoux e Sara Forestier. Às vezes não sabemos porque tudo se ilumina, diz um polícia a uma das mulheres deste sórdido affair. Vibrante, sereno, sabendo tudo, convida-a: “Salva-te. Salva-te”. Como um anjo, um zelador da humanidade, colocando tudo o que é humano em território sagrado. Roubaix, une lumière: o título original diz muito, a versão em inglês diz mais: “Mercy” [compaixão].

Dois polícias: Antoine Reinartz e Roschdy Zem e Shanna Besson/Why Not Productions
Duas assassinas: Sara Forestier e Léa Seydoux Shanna Besson/Why Not Productions
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Dois polícias: Antoine Reinartz e Roschdy Zem e Shanna Besson/Why Not Productions

É um bailado, este filme, de uma graça flutuante: Roschdy Zem e Antoine Reinartz são tão reais quanto silhuetas assombradas, como num policial de Jean-Pierre Melville (referência assumida pelo realizador). E Léa Seydoux e Sara Forestier – a sequência em que repetem os gestos do seu crime, sequência em que elas se vão iluminando... – são devastadoras.

Léa e Sara são nova dupla feminina numa edição do concurso que já viu Noémie Melant e Adèle Haenel, a pintora e o modelo de Portrait de la jeune fille en fleur, de Céline Sciamma, actrizes a quem alguns veriam bem atribuído um prémio de interpretação no sábado; e que vai ver ainda uma psicoterapeuta e a sua paciente, Virginie Efira e Adèle Exarchopoulos, em Sybil, de Justine Triet. E quem elas são... ! Léa Seydoux e Adèle Exarchopoulos de A Vida de Adèle, de Abdellatif Kechiche, partilharam com o realizador, decisão inédita, a Palma de Ouro de 2013 (e depois acusaram-no de agressão sexual); e Sara Forestier é a transbordante esquiva suburbana de A Esquiva (2003), também de Kechiche.

Sem medo

E, a propósito, eis que chegou o próprio Kechiche à competição. Coube a Cannes desvendar Mektoub, My Love: Intermezzo, a continuação de Mektoub, My Love: Canto Primeiro (2018), filme com que o cineasta de origem tunisina regressa à Croisette seis anos depois daquele prémio a três que deixou sabor a débâcle, pelos ressentimentos que os protagonistas trocaram em público.

E então, o Mektoub? Para já, com a coisa ainda quente: é desafiadoramente bizarro colocar este filme no meio dos outros 20 candidatos à Palma de Ouro, pô-lo como objecto de comparação e de julgamento quando o seu título nos diz logo que é um interlúdio, algo entre dois actos, ou dois cantos. É difícil prever, por exemplo, que experiência permite a quem não viu o Canto Primeiro, que tipo de “conversa” os espectadores podem ter com as cenas. “Chapeau”, então, para os seleccionadores da competição (mas não haveria como dizer “não” a um filme deste francês). E “chapeau” para Abdellatif Kechiche. Que foi radical, obstinado, temerário e concretiza um “tour de force”.

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Abdellatif Kechiche fecha o espectador numa discoteca DR

Assim: corta as linhas de fuga e o horizonte de romanesco, fecha as personagens, os engates e o sexo, numa discoteca durante mais de três horas. Com excepção de breve prólogo a estabelecer uma ligação com o final do filme anterior (Amin, o pretendente a argumentista e fotógrafo, desaparecia com Charlotte na praia; agora Amin fotografa Charlotte nua, é a “continuação” daquele plano). E com um final que podem ser as cenas de um próximo capítulo.

Na verdade, antes das discotecas, Kechiche, talvez como auxiliar de memória ou como uma concessão ao espectador que se inicia (mas a coisa pode baralhar mais o neófito), filma uma conversa de praia que faz um ponto da situação. Mais ou menos assim: chegou a Sète uma nova rapariga, vinda de Paris, Marie (é a ela que as outras personagens vão explicando o “cenário”); Tony continua a aplicar-se no areal com a sua imitação de Aldo Maccione para seduzir crédulas e carentes; Ophélie descobriu que está grávida dele, quer fazer um aborto, e faltam três semanas para o seu casamento com Clément, ainda em missão no Iraque; Céline continua esvoaçante, entre raparigas e rapazes, mas decidiu que o futuro há-de ser Amin e não se importa de esperar que ele gaste as energias com as outras; Amin, que continua a olhar mais do que a participar, é solicitado por Ophélie para os procedimentos do aborto e continua a desenvolver o seu argumento para um filme: uma história sobre robôs programados para o amor incondicional; e vê-lhe ser-lhe “oferecida” a tal recém-chegada Marie, que é parecida com Emmanuelle Béart ou Romy Schneider...

Feitas as conversas, enumeradas as situações, é com Voulez-vous, dos Abba, ou com Enough is enough, por Donna Summer/Barbra Streisand (uma das duas, estão ambas em repeat...), o Intermezzo encerra as personagens na discoteca. Onde Kechiche suspende a(s) narrativa(s). Já os rabos, a dança e o sexo – “tour de force” na explicitação, uma daquelas sequências que dará que falar e que baralha a percepção do tempo – são lançados de forma desenfreada. Neste concurso de imobilidade e movimento (é uma proposta radical numa competição: um filme que se desembaraça de álibis), personagens e gestos esbracejam até ao fim. O Verão de 1994 está a acabar.

Definitivamente, e digam o que disserem sobre o autocentramento de Kechiche, a sua vaidade até, é um cineasta sem medo.

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