Mais do que uma casa, uma causa

A destruição da casa da Rua Pinto Bessa inscreve-se numa nova perspectiva desvalorizadora da cultura histórica local.

A recente demolição de uma casa mandada edificar pelo Comendador Manuel de Miranda Castro em 1913 na Rua Pinto Bessa no Porto pode ter passado despercebida para muitos, mas deveria ser objecto de reflexão não apenas pelo seu carácter específico de obra singular como também pela sua importância política e disciplinar.

Era esta uma casa invulgar na frente norte da importante artéria em que se inseria, destacando-se pela sua implantação, pela sua volumetria, enfim, pela sua arquitectura. Sempre o foi, seja na época da sua construção, quando se situava entre casas de lotes mais ou menos estreitos semelhantes a tantas outras da cidade, seja nos últimos vinte ou trinta anos, quando ficou definitivamente emparedada entre altos prédios de apartamentos.

Francisco d'Oliveira Ferreira, seu autor, é um arquitecto que inicia a sua actividade profissional contemporaneamente ao advento da República, cujo ideal partilhava. Era então uma figura emergente no panorama profissional da arquitectura portuense, num momento em que o papel do arquitecto na sociedade começava finalmente a ser valorizado. A construção burguesa portuense durante daquela época é marcada profundamente pela intensa actividade de dois arquitectos com os quais Oliveira Ferreira estabelece uma relação de grande proximidade. São eles José Teixeira Lopes e Eduardo Alves, arquitectos actualmente quase desconhecidos mas que exercem um papel de profunda renovação da arquitectura portuense, rompendo com os critérios academistas que dominavam o ensino das Belas Artes. É através da acção daqueles que, na região portuense, a arquitectura qualificada deixa de ser atributo exclusivo dos grandes edifícios públicos, verificando-se um abandono dos valores de monumentalidade, de classicismo e de simetria em favor de uma noção de modernidade ancorada nos avanços das tecnologias de construção, do conforto e da funcionalidade das edificações. É neste contexto que se observa uma crescente qualificação da arquitectura doméstica corrente. Se José Teixeira Lopes, com quem Oliveira Ferreira trabalhara, era dado a uma arquitectura tradicionalista mas que integra as modernas técnicas do betão armado dentro do espírito da construção económica, Eduardo Alves envereda por uma pesquisa formal influenciada pela Arte Nova. Oliveira Ferreira traça o seu caminho na estranha conjugação dos dois princípios de tradição local e de modernidade de influência europeia, concebendo um modelo arquitectónico que sugere um gosto neo-barroco, com cantarias elaboradas e painéis de azulejos. A casa da Rua Pinto Bessa é exemplo primeiro deste modelo, aqui articulado numa volumetria assimétrica de concepção moderna.

O exemplo da casa da Rua Pinto Bessa vem a constituir um modelo de grande aceitação, seja pela sociedade burguesa, seja pelas novas gerações de arquitectos que retomam o mesmo modelo, sobretudo ao longo da década de 1920. Mas este modelo não ficará por aí. Os Paços do Concelho de Vila Nova de Gaia, obra maior de Oliveira Ferreira, é exemplo da aplicação dos mesmos modelos compositivos a um edifício institucional que se pretende próximo dos cidadãos e espelho edificado da democracia. A arquitectura da casa da Rua Pinto Bessa era, assim, exemplo de uma arquitectura acessível a todos. Durante anos, muitas das obras sucessoras da casa da Rua Pinto Bessa desaparecem, mas esta permanecia firme, com as suas cantarias, o seu painel de azulejos, o seu torreão de ângulo... até que também ela desaparece.

Quando, em 1964, se volta a olhar para Oliveira Ferreira, discutem-se em Veneza as novas noções que devem presidir à preservação da arquitectura do passado. É aí instituída a noção de Património por oposição à de Monumento, a noção de conjunto em oposição à noção objectual do edifício, a importância dos valores locais para além dos valores singulares de cada país. Até 1974, Portugal mantém as políticas de preservação quase exclusivamente associadas aos castelos, às igrejas e aos solares erguidos até à época de Pombal. É apenas a partir daquela data, e muitas vezes pela mão de artistas e arquitectos filiados na oposição democrática durante o período do Estado Novo, que se verifica uma atenção crescente para com a arquitectura dos séculos XIX e XX, a arquitectura da cidade, arquitectura corrente mas exemplo das transformações sociais e culturais que nos influenciam ainda hoje. A noção de Património surge, assim, na mesma medida que a obra de Oliveira Ferreira, de Teixeira Lopes e de Eduardo Alves: a valorização do passado passa a ser acessível ao cidadão comum, que vê finalmente reconhecido o seu papel histórico na criação da sociedade contemporânea.

Por oposição, a destruição da casa da Rua Pinto Bessa inscreve-se numa nova perspectiva desvalorizadora da cultura histórica local. As políticas actualmente vigentes têm demonstrado que do passado pouco mais importará preservar do que as igrejas e algumas (poucas) fachadas, obras erguidas na sua maioria até à época de Pombal. A retoma de estratégias retrógradas sobre a arquitectura do passado é, assim, exemplo de uma política de aculturação. O passado e a arquitectura ficam apenas acessíveis aos poucos que os detêm enquanto proprietários, a quem são agora atribuídos plenos direitos. Por sua vez, e como até à época de Oliveira Ferreira, o papel do arquitecto corrente é novamente desvalorizado, porque a sua obra fica imersa entre tantas outras, anónimos produtos de autores individuais incapazes de romper com os critérios academistas que alastram na cidade enquanto fruto da promoção imobiliária.

Sugerir correcção
Comentar