O “dilema do agulheiro”: do lado dos professores ou das contas públicas

O Governo respondeu com a defesa das contas do Estado, no interesse dos dez milhões de portugueses, e diz o que pode pagar. Se prometesse pagar mais do que o que pode, ficaria tranquilo, paralisado, com a moral entre aspas, como o agulheiro que não fez a agulha.

Um elétrico desce uma rampa desgovernado, sem travões. O condutor vê à frente uma bifurcação de linhas. Numa das linhas estão cinco trabalhadores e na outra está apenas um. Se o condutor (guarda freio) não fizer nada, o elétrico vai em frente e mata as cinco pessoas. Se ele atuar no sistema, o elétrico passa para a linha onde só está um. A “moral da história” – com muitas aspas – pode dizer que o guarda-freio foi responsável pela morte de uma pessoa. Se ele não tivesse feito nada, não tinha culpa nenhuma, a responsabilidade pela morte das cinco pessoas era da avaria dos travões, não dele.

A “moral” por de trás do pagamento total do congelamento das carreiras dos professores, cerca de 180 mil, comparada com os mais de seis milhões de portugueses, trabalhadores privados, outros funcionários públicos e reformados que também sofreram cortes salariais e aos quais não foi prestada qualquer indemnização, é idêntica à do conhecido “Dilema do Troley” – uma das muitas construções práticas associadas à Teoria dos Jogos – que exemplificámos atrás.

A avaliação da escolha do guarda-freio é determinada pelas consequências, é pragmática, morrer um ou morrerem cinco. O que se passa em alguns setores da política nacional é o alheamento deste tipo de comparações. Com efeito, não é possível ignorar que o custo das reivindicações dos professores sobre o tempo de serviço congelado representará um encargo sobre a totalidade da população portuguesa. Pagamentos que excedam as disponibilidades orçamentais não se resumem a variações nas décimas do défice orçamental e do correspondente aumento da dívida pública. Esses pagamentos têm de ser pagos e é pelos portugueses. A ideia do “não pagamos e vamos renegociar a dívida” só funciona na demagogia. Não tem qualquer viabilidade política nem prática quando enunciada unilateralmente. Poderá fazer parte de uma negociação, jamais da imposição de quem deve dinheiro e precisa de continuar a ter quem lhe empreste mais, como é o caso de Portugal.

Lamento o que se ouve na praça pública, da parte de algumas forças políticas, que obrigam a esta trivialidade de argumentos.

Os cortes de salários, pensões e paralisação de promoções nas diversas carreiras da função pública derivaram, principal e quase exclusivamente, das circunstâncias resultantes da crise de 2008, batizada de crise de endividamento, do subprime, e das bolhas imobiliárias que rebentaram, e outros nomes. Logo nos EUA, com o colapso do Lehman Brothers, da AIG e outros potentados económicos, ficou provado que a crise que se iniciava iria ser paga pelo contribuinte. George W. Bush meteu, de imediato, 120 mil milhões de dólares na seguradora citada para que cinco milhões de americanos não ficassem sem pensões e sem comer no fim do mês. Em Portugal, a crise adquiriu especificidades, agravadas com a crise do euro de 2011, pela necessidade de solicitar empréstimos ao Mecanismo de Assistência Financeira da União Europeia e ao FMI, com a presença inefável da troika, ousada nas imposições de caráter económico e financeiro, na dupla dimensão conjuntural e, abusivamente, até estratégica.

E a crise passou. Ficaram os cortes. As reivindicações surgiram. Surgiram do setor público, dos grupos profissionais mais numerosos ou cuja reivindicação se associa a perturbação social mais grave, por via da greve. Sabe-se que nenhum grupo ou classe social perde vantagens sem protesto, mormente quando as perdas são significativas. Todas as situações trágicas ou mesmo as transformadas em tragédia são atrativas da comunicação a todos os níveis: dos líderes políticos, dos grupos sociais e, especialmente, da comunicação social, aliás, impulsionada por estas circunstâncias.

Em Portugal, as dramatizações políticas, em resultado de lutas eleitorais, caracterizam-se por serem espevitadas na linguagem e superficiais na discussão de ideias. O tema da contagem do tempo dos professores ressurgiu intensamente em plena campanha das eleições europeias. Sendo um assunto de natureza interna e sindical, a sua oportunidade só pode ser justificada pelo aspeto inédito dos partidos à esquerda e à direita do partido do Governo se juntarem contra ele. Sem medirem as consequências orçamentais do que votavam e considerando o Governo que tal faria regressar o país às dificuldades financeiras e ao desprestígio internacional da insolvência, de que o país conseguiu livrar-se recentemente, avisou que esse caminho constituía uma escolha que só o eleitorado poderia legitimar. Informou que se demitiria se a lei fosse aprovada, com o argumento de que não há cobertura financeira, neste nem nos próximos anos, para pagar o tempo de congelamento dos professores e das outras carreiras especiais do funcionalismo público.

O Governo respondeu com a defesa das contas do Estado, no interesse dos dez milhões de portugueses, e diz o que pode pagar. Se prometesse pagar mais do que o que pode, ficaria tranquilo, paralisado, com a moral entre aspas, como o agulheiro que não fez a agulha.

O autor escreve segundo o novo Acordo Ortográfico

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