Sobre a noite passada: A Guerra dos Tronos teve o final que merecíamos?

A série acabou mas a conversa sobre o seu final está só a começar. The Iron Throne distribuiu poder, matou sonhos e terminou uma história que mudou a televisão. Contém spoilers.

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“Quando o ecrã fica negro, a série acabou”, dizia David Benioff antes de a última temporada de A Guerra dos Tronos chegar aos espectadores, constatando o óbvio e o definitivo da tarefa que dividiu com D.B. Weiss ao encerrar uma das maiores histórias da década audiovisual. Em 1996, tudo começava pelo olhar de uma jovem personagem, marcada pelas histórias que lhe eram contadas sobre o mundo lá fora. Na madrugada desta segunda-feira, tudo acabou lembrando o valor das histórias em torno de The Iron Throne. Livros, registos, memórias, numa série e numa patrulha que acabou mas que, como as conversas sobre o final de A Guerra dos Tronos, afinal está só a começar.

Este artigo contém spoilers sobre o episódio final de A Guerra dos Tronos

E no fim, ficaram “aleijados, bastardos e coisas quebradas”. Seis reinos, um rei e uma rainha, um Norte independente, e o sonho de um rei para além da Muralha. No 73.º episódio de A Guerra dos Tronos, havia uma guerra para ganhar e a vitória coube a uma família que foi a porta de entrada do espectador para este mundo ficcional. Um deles em particular foi o seu primeiro narrador nos livros de George R.R. Martin (ainda por acabar) que servem de base às Crónicas de Gelo e Fogo: o jovem Bran Stark (Isaac Hempstead Wright), cujo olhar curioso nas alturas tanto serve para procurar dragões desaparecidos hoje quanto servia, há anos, para testemunhar um amor proibido que desencadeia esta história. Esse olhar impregnado de informação, guardião de uma certa ordem, é agora o olhar do rei.

Las Vegas tinha razão, com as casas de apostas há muito a decretar que esta personagem algo desligada da realidade humana mas ligada ao que mais importa — à magia deste universo ficcional — seria o rei, o vencedor deste jogo. Numa cimeira pós-regicídio, Bran, the Broken, o “aleijado” do primeiro capítulo dos livros, é decretado monarca do último episódio. Sansa Stark (Sophie Turner), uma jovem que nunca foi quebrada, é rainha do Norte independente. Antes de irem para a cama, ou dela saídos ainda de noite, milhões de espectadores ficaram a saber que Jon Snow (Kit Harington) rumou a norte no seu fado de bastardo e que Arya Stark (Maisie Williams) navega para oeste, à descoberta.

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“O que une as pessoas? Exércitos, ouro, bandeiras? Histórias. Não há nada mais poderoso”, persuade Tyrion Lannister (Peter Dinklage), agrilhoado, autor da frase dos livros que deu também título ao quarto episódio, em Maio de 2011: “Tenho um ponto fraco no coração por aleijados, bastardos e coisas quebradas”. Ao longo dos anos, muitos preencheram estas categorias n’A Guerra dos Tronos e sua superação moral faz parte da mensagem desta história que, na televisão, foi a confluência de factores que deram aos espectadores a série que mereciam. Foi este o final merecido?

Imagens do cinema blockbuster

Depois de The Bells, ou o episódio da destruição tornada mulher, The Iron Throne começou com aquilo que os Stark sempre souberam: o Inverno está a chegar. Era, porém, uma espécie de Inverno nuclear. The Bells foi inspirado no bombardeamento de Dresden na II Guerra Mundial e The Iron Throne começou levando os espectadores às horas após a queda da bomba em Hiroshima, com corpos vivos e mortos a pairar num vazio de som e cor. Daenerys Targaryen (Emilia Clarke) serviu a Weiss e Benioff, autores e realizadores deste último episódio, para criar mais imagens memoráveis, de cinema blockbuster — as asas do seu dragão a fazerem-se suas, a consequência do seu ataque à cidade com os gémeos Lannister mortos sob estéticos escombros, e um dragão a derreter, finalmente, a roda (ou melhor, o Trono de Ferro do título do episódio), com a chama da dor da perda da sua mãe.

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A morte de Daenerys Targaryen, a de uma rainha danificada, cega pelas muitas traições, fez-se às mãos do herói trágico d’A Canção de Gelo e Fogo, Jon Snow, que extinguiu com uma facada os sonhos de um certo heroísmo feminista. Deu lugar a outro, incorporado por Sansa Stark e a sua vitória — “Ambas sabemos o que significa chefiar pessoas que não estão inclinadas para a liderança e uma mulher”, dizia Daenerys a Sansa há um mês. E assim, sob a ameaça e a ternura de um dragão enlutado, a história dos dois protagonistas desta canção com tantas cabeças foi uma tragédia — Snow, para muitos o centro moral da série, foi condenado a regressar à Muralha, talvez para viver além dela.

Especial O Fim de A Guerra dos Tronos

O sonho da democracia, morto também com galhofa geral num episódio sem muitos sorrisos, foi substituído pela promessa de que “daqui em diante os governantes não serem nascidos, serão escolhidos” — pelos senhores e senhoras do reino e não pelo povo. É tudo “agridoce”, conforme o prometido por George R.R. Martin, embora os três autores tenham prometido não revelar o que têm em comum o final dos futuros livros e a versão TV. A série escreveu um fim para esta história, mas ela não acabou. Televisão e livros “são duas variações da mesma história, ou uma história similar, e isso acontece sempre que algo é adaptado”, lembrava George R.R. Martin à Rolling Stone. Os livros foram profusamente homenageados nas cenas finais de uma série que ultrapassou e moldou à sua imagem uma história que deles veio.

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Com The Iron Throne, começa o debate sobre o que pensam os seus autores sobre poder, género e fantasia: é tudo uma questão de ganhos e perdas, honra e danos colaterais? Se há uma certeza, é a do poder das histórias.

O que fica de A Guerra dos Tronos?

“Gelo e fogo”, resumia a jornalista e especialista Mallory Rubin no programa Talk the Thrones. “Os primeiros 40 minutos foram bastante espectaculares”, defendeu, “em alguns momentos sentia-se aquilo a que o ritmo condensado da última temporada nos tinha conduzido”. Já “a segunda metade do episódio foi desafiante”. Nestes últimos 80 minutos houve mais diálogo, espelhando até as conversas dos espectadores entre episódios, como que preenchendo espaços de densidade narrativa entre as ruínas. Poderia o final de A Guerra dos Tronos alguma vez não parecer abrupto?

“Nem todos ficarão felizes porque isso é especialmente impossível com esta série, mas A Guerra dos Tronos despediu-se como a melhor versão de si mesma”, avalia o crítico Tim Goodman na Hollywood Reporter. “Um final épico que corrige alguns grandes erros”, resume Lucy Mangan no Guardian com uma classificação de quatro estrelas em cinco. “Um bom último episódio que podia ter sido muito melhor”, sugere Erik Kain na Forbes.

A escolha do seu rei, cujo trono é a sua digna cadeira de rodas e não um trono derretido pelo luto de um dragão, é penalizada pela forma como a série tem tratado Bran Stark, defende-se — “Bran tem sido uma das personagens mais insatisfatórias da série. É quase um homem, como disse a Jon, mas é sobretudo uma ferramenta de conveniência concebida para transmitir informação narrativa”, assinala Jeremy Egner no New York Times. “Um prémio de consolação para Sansa”, diz Daniel D’Addario na Variety. Entre a discussão formal dos feitos do episódio e a minúcia da intriga ou a coerência de seres mitológicos, o traço comum é a tensão entre a história que se quis contar e o tempo e as escolhas para o fazer. São coisas que Weiss e Benioff não vão ler. O seu plano para a noite passada era desligarem-se da Internet e beber.

O que fica de A Guerra dos Tronos? Um copo de vinho, rubro da memória de uma série que decapitou o seu herói aparente, que tingiu um casamento de vermelho, que envenenou o seu rei petulante, que esmigalhou um príncipe confiante, que puniu a sua rainha ao som de um badalo que censurava — “Vergonha. Vergonha. Vergonha”. Deificou uma princesa renascida das chamas com três dragões para libertar escravos, manuseou ressurreições teimosas, matou o herói trágico e fê-lo voltar, fez filmes de terror com zombies, contou histórias palacianas ou de um servo cujo nome encerrava um trauma de pura emoção — e de tantas criaturas quebradas em mais de 70 horas passadas com incesto, violação, castração, tortura, saques, traições, sagacidade, ideias e diálogos exímios. O seu melhor tornou o seu potencial pior mais doloroso para os fãs, como as últimas semanas mostraram.

Esta é uma série que mostrou o que nunca tinha sido mostrado, narrativa e tecnicamente, em televisão. Simbiose entre literatura fantástica de bases realistas escrita por um objector de consciência e as potencialidades da televisão capaz de mostrar “a maior batalha” e o “momento mais sangrento”, A Guerra dos Tronos foi uma criatura televisiva que evoluiu para além do seu criador literário. E graças a isso sabe-se que agora é possível gastar milhões e meses para desenhar uma cena de acção ou fazer “worldbuilding” a uma escala antes só cinematográfica.

Para o fim, ficam mais palavras. “As conversas geradas por A Guerra dos Tronos e outras séries são maravilhosas e necessárias porque reflectem questões que são muito mais amplas do que qualquer história em particular”, escrevia este fim-de-semana a crítica premiada com o Pulitzer Mary McNamara no Los Angeles Times. “Qualquer série que provoque esta profundidade de sentimentos sobre temas como cadência, desenvolvimento de personagens, inclusão e representação das mulheres é uma vitória, independentemente de como acabe. Elas são o verdadeiro, e o melhor, jogo em Game of Thrones.” O ecrã ficou negro e A Guerra dos Tronos acabou, mas a conversa está só a começar.

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