O Cardeal “imprudente”

Falar em “imprudência”, em jeito de acto de contrição, é surpreendente e teve, da parte dos partidos políticos, a reacção que se esperava. Ninguém quer afrontar a instituição Igreja Católica, numa purga que seria inconsequente e nada traria de bom para os resultados da eleição do próximo Domingo ou nas que se seguem.

Manuel Clemente vem demonstrando uma inusitada incapacidade de ler a realidade. Tanto mais grave quanto falamos de um clérigo premiado pela sociedade civil, um intelectual, um homem mais de gabinete que de acção. Porventura, uma personalidade mais compatível com Ratzinger que Bergoglio.

Confesso que, enquanto Bispo do Porto, a imagem que deixou era de maior abertura e habilidade de ler os sinais dos tempos. Não sei quem é o responsável material pela partilha do post na página de Facebook do Patriarcado de Lisboa, mas em última instância é sempre o Cardeal. Falar em “imprudência”, em jeito de acto de contrição, é surpreendente e teve, da parte dos partidos políticos, a reacção que se esperava. Ninguém quer afrontar a instituição Igreja Católica, numa purga que seria inconsequente e nada traria de bom para os resultados da eleição do próximo Domingo ou nas que se seguem.

O que me admira é que, sendo Manuel Clemente um historiador reconhecido, tenha cometido a “imprudência” de não perceber que, no Portugal de hoje, a Igreja, como instituição que orienta a vida política, tem muito pouco peso. Veja-se a evolução da não punibilidade do aborto que – e bem – foi sendo alargada (tristeza imensa pelo que se passa em Estados como o Alabama (EUA), onde uma mulher vítima de violação tem de levar a gravidez até ao fim), a quase passagem dos projectos de lei em matéria de eutanásia, o casamento entre pessoas do mesmo sexo e o direito a adoptarem, a descriminalização do consumo de drogas, cumpridas determinadas condições, o uso de canábis para fins medicinais. A Igreja deve ser equidistante dos partidos, sem prejuízo de, naturalmente, propagar a sua mensagem. Mas apenas isso: os crentes, depois, porque não são destituídos, farão as suas escolhas. Em liberdade, sem proselitismo político.

Mais ainda quando se aconselha o voto no “Basta!”, partido de extrema-direita que defende a não-inclusão de emigrantes, a castração química, endurecimento punitivo, enfim, uma cultura de ódio e desconfiança face ao outro, a qual não podia estar mais longe da mensagem de Cristo. Com todas as devidas diferenças – mas assim começam as coisas – é como se a Igreja alemã anterior a 1939 tivesse apoiado o partido nacional-socialista alemão. E fê-lo, mesmo que de jeito discreto. E o que fez o Cardeal Cerejeira durante a ditadura de Salazar-Caetano?

É este o legado que Manuel Clemente deseja que fique associado ao seu nome? Não é por acaso que o Cardeal de Leiria-Fátima vai surgindo, sem grande esforço, como uma certa “lufada de ar fresco” na igreja lusitana, alinhado com Francisco, ganhando assim os seus favores. Ao contrário do que muita gente pensa, o Patriarca de Lisboa (que nem tem necessariamente de ser Cardeal) não é “chefe” do catolicismo luso, mas é somente o líder da sua diocese. É óbvio, contudo, que o título honorífico e o facto de se tratar da capital, lhe atribuem um poder de influência em regra maior que o dos demais bispos. Clemente vem perdendo esse capital de relevo, a favor de Marto.

Com “imprudências” destas, mais longe fica Clemente da Cúria Romana e, sobretudo, da mensagem dos Evangelhos, do pulsar da História e do coração dos Portugueses. Não creio que o episódio tenha algum efeito relevante nos resultados eleitorais, atenta a já assinalada quase irrelevância da instituição na vida política. É um dado histórico o tempo sombrio em que o prior, do altar, mandava colocar a cruzinha no símbolo A ou B, mais coadunado com um certo favorecimento de privilégios que de todo se queriam perder. Mais que uma “imprudência”, admira o profundo erro de leitura histórica de Manuel Clemente, um historiador respeitado.

Este erro de análise só não é, na prática, grave para a Igreja, na medida em que, há muito – e bem –, os Portugueses adquiriram maturidade democrática e cívica e não se deixam condicionar no seu voto. Afinal, a boca pode dizer uma coisa e a mão, no silêncio da cabine de voto, fazer outra diametralmente oposta (veja-se a célebre “mise-en-scène” de Portas). Tal como apelar ao voto num partido xenófobo e racista, quando os cristãos foram tão perseguidos e continuam a sê-lo nos nossos dias (veja-se o Sri Lanka ou a China). Coisas destas talvez devessem estar no topo da agenda do Cardeal, assim como a ajuda que a Igreja pode dar no aplacar das iniquidades.

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