Cada médico fez mais de 300 horas extras num ano

Mais de 70% dos médicos inquiridos num estudo observacional dizem que têm dificuldade em conciliar o trabalho com a família.

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Rui Gaudencio

Os médicos trabalharam cerca de 5,7 milhões de horas extraordinárias em apenas um ano no Serviço Nacional de Saúde (SNS) em Portugal. Cada médico fez, em média, 314 horas de trabalho suplementar em 2017 (últimos dados disponíveis), tendo em conta o universo dos profissionais que naquele ano foi para além do seu horário normal, de acordo com o último balanço social feito pelo Ministério da Saúde.

Este número de horas suplementares anuais corresponde a mais do dobro do que foi recentemente acordado com os dois sindicatos que representam os médicos — que reivindicaram, com sucesso, a diminuição do limite máximo actual de 200 horas para 150 horas extras que os médicos podem ser obrigados a fazer por ano, sobretudo para assegurar o funcionamento dos serviços de urgência.

Os dados, que constam do último Relatório Social do Serviço Nacional de Saúde (SNS), dão uma noção da dimensão da pesada carga horária dos médicos, a maior parte dos quais já tem, à partida, horários mais alargados do que é habitual na função pública. No ano passado, de acordo com a Administração Central do Sistema de Saúde (ACSS), quase metade (47%) dos clínicos que trabalhavam no sector público faziam 40 horas semanais, quase um quinto (23%) tinha um horário de 42 horas e apenas 23% faziam 35 horas. Os restantes tinham outro tipo de horários.

Vida familiar “sequestrada”

Foi para perceber a dimensão do impacto desta carga horária excessiva na conciliação do trabalho e a vida familiar dos médicos que um grupo de investigadores fez um estudo “exploratório e observacional”, que esta semana foi publicado na Acta Médica Portuguesa, a revista científica da Ordem dos Médicos. As conclusões são preocupantes: quase três quartos (73%) dos inquiridos que trabalham no SNS admitiram ter dificuldades em encontrar o equilíbrio entre estas duas dimensões da sua vida. “Está a haver um sequestro, pelo mundo do trabalho, da vida familiar e pessoal dos médicos”, conclui o coordenador do estudo, o psiquiatra Pedro Afonso.

Intitulado Conciliação Trabalho-Família na Profissão Médica, o estudo não é representativo do universo desta profissão, uma vez que teve como base um inquérito online a uma amostra de 181 médicos que são sócios da Associação dos Médicos Católicos Portugueses, um “viés” assumido por Pedro Afonso. Mas o professor auxiliar da Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa nota que o que se pretendeu foi dar pistas para o necessário debate sobre a conciliação trabalho-família da profissão médica em Portugal, e assim perceber a dimensão do problema, perante a actual escassez de dados relativos à realidade nacional. “É um tema escondido e pouco estudado”, enfatiza.

Em média, a carga horária semanal declarada pelos médicos foi de 46,8 horas, mas 40% dos inquiridos admitiram trabalhar habitualmente 50 ou mais horas semanais, e um quinto revelou mesmo que trabalha seis dias por semana. Já há aqui “situações de ilegalidade, uma vez que há uma directiva europeia que estabelece como limite máximo as 48 horas semanais, incluindo as horas extraordinárias”, defende o psiquiatra.

Quando questionados sobre o limite máximo de carga horária semanal a partir do qual acreditavam haver claro prejuízo na conciliação trabalho-família, mais de metade dos inquiridos considerou que trabalhar mais de 35 a 40 horas semanais implica já um claro prejuízo a este nível.

Ainda que este seja “um problema que afecta toda a sociedade”, o objectivo do estudo foi estudar a profissão médica, dado que esta “está mais em risco, até pelas suas características muito particulares”, explica Pedro Afonso. “Os médicos trabalham nas urgências, por turnos e ao fim-de-semana. E este tema não é habitualmente alvo das negociações por parte dos sindicatos, uma vez que as reivindicações assentam sobretudo nas carreiras e nas remunerações”, lamenta.

A insatisfação patente nestes resultados pode ser “um dos factores que justificam êxodo de médicos para o sector privado e para a emigração”, equaciona ainda o psiquiatra, notando que foi menor o grau de insatisfação dos inquiridos que trabalham no sector privado. Talvez porque, especula, no privado é mais fácil a flexibilização do horário de trabalho. Esta é justamente uma das três medidas que os inquiridos defendem ser as mais importantes reverter esta situação. As outras duas são o trabalho a tempo parcial e a redução temporária do horário de trabalho (por exemplo, para assistência à família).

“O desinvestimento no SNS e a saída de muitos dos médicos mais experientes tem conduzido a uma degradação das condições de trabalho com um impacto muito directo e negativo na conciliação entre a vida profissional e familiar”, comenta, a propósito, o bastonário da Ordem dos Médicos, Miguel Guimarães. “É urgente que o Estado promova esta conciliação”, remata Pedro Afonso.

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