Paisagem: lugar de criação da escrita

É com esta “rica, complexa e desconcertante” leitura da variedade paisagística que devemos pugnar por uma Política Pública da Paisagem, que ampare os diferenciados zeladores na eficaz gestão da sua salvaguarda. Para que as nossas paisagens consigam eternizar os lugares de criação da escrita.

Não há muito tempo, o geógrafo João Ferrão publicou, no PÚBLICO, um acutilante artigo de opinião a que deu o nome “Que aprender com a revolta dos esquecidos?”. Falava de uma constelação de factores que tinham contribuído para a especialização do conhecimento científico e que, no caso da Geografia, tenderam a obnubilar os assuntos relacionados com a terra e a leitura das paisagens. Para o efeito, citava Orlando Ribeiro, um dos mais exímios leitores da variedade paisagística portuguesa, que escrevera, em 1945, uma síntese de incomensurável fulgor geográfico: “Portugal, o Mediterrâneo e o Atlântico”. Recordo-me de ter lido esta obra com a fragrância própria de um romance. E de jamais ter esquecido a interrogação que nos lançava: “a que deve este país a sua rica, complexa e quase desconcertante diversidade regional?” A sua resposta dimanante de uma geografia dita possibilista tinha no estudo da geografia regional o seu padrão e na paisagem o seu fio-de-prumo.

Acontece que não há paisagem para sempre, como nos dilucida Álvaro Domingues. E mesmo aquelas que julgávamos imperecíveis, nomeadamente as que se abrigam no âmago da literatura, carecem de ser cuidadas para que sejam resolutamente livres e duradouras. Neste processo se fundamenta um princípio indesmentível: só lendo é que se goza o reconhecimento deste universo recriado e a sua consequente preservação.

Talvez levado por este desiderato, fui encorajado a retirar da estante uma velha edição de A Cidades e as Serras, de Eça de Queiroz, o que me permitiu reavivar a notável encenação que este criara em Tormes, a partir de um lugar que conheceu e logrou ficcionar, ao inspirar-se na Quinta da Vila Nova, propriedade herdada pela mulher.

Outro exemplo categórico da enunciação de uma paisagem literária é o que decorre da obra de Aquilino Ribeiro, designadamente a que se reporta ao território que ficou a ser conhecido como Terras do Demo. Por se aquietar na mesma correnteza desta estante, foi fácil capturar o romance em que a ficção se agarrou à paisagem para crismar uma toponímia tratada “despicientemente por Terras do Demo”, onde “sem dúvida nunca Cristo ali rompeu as sandálias, passou el-rei a caçar, ou os apóstolos da igualdade em propaganda”.

Estes dois exemplos sublinham a progressiva importância que as paisagens literárias têm vindo a adquirir na criação de territórios sustentáveis. E verbalizam a estratégia actual da União Europeia (UE), harmonizada através da Convenção Europeia da Paisagem, em confirmar o interesse que os lugares literários assumem na valorização das paisagens a que se reportam, tanto no contexto rural como no urbano.

Também no contexto português, se começa a aprofundar um discurso reflectindo a importância do estudo das paisagens literárias. Nesta linha, convém emoldurar o trabalho desenvolvido pelo Instituto de Estudos de Literatura Tradicional (IELT) que, desde os finais de 2009, se encontra a elaborar um projecto para a criação de um Atlas de Paisagens Literárias de Portugal Continental, baseando em obras de escritores dos séculos XIX e XX.

É com esta “rica, complexa e desconcertante” leitura da variedade paisagística que devemos pugnar por uma Política Pública da Paisagem, que ampare os diferenciados zeladores na eficaz gestão da sua salvaguarda. Para que as nossas paisagens consigam eternizar os lugares de criação da escrita.

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