É hora de Portugal se desmarcar do racismo estrutural na educação.

“Marcados por relações amigáveis e pacíficas”? É hora de Portugal se desmarcar do racismo estrutural na educação.

Quem tem medo da sua História? Esta é a pergunta que sempre me ocorre fazer de cada vez que deparo com mais uma instância de reprodução no espaço público do discurso historiográfico que o Estado Novo celebrou sobre os Descobrimentos Portugueses. Esse discurso, com antecedentes que mergulham na noite dos tempos, sobreviveu praticamente incólume ao 25 de Abril e ao fim do império colonial português.

Na semana passada, esse discurso voltou a emergir, desta feita a partir da denúncia de um livro de apoio à preparação da prova de aferição da disciplina de História e Geografia de Portugal do 5.º ano, publicado pela Porto Editora. No dia 9 partilhei no meu mural de Facebook a foto de uma página desse livro, a partir do mural de uma ativista negra, que é mãe de uma aluna que frequenta uma escola na área metropolitana de Lisboa onde o livro é recomendado. Fiz acompanhar a foto de um comentário crítico que dizia “como a escola continua a ensinar a mentira, em parte porque na mentira foram formados os formadores”.

No momento em que redijo este texto, o post foi partilhado 334 vezes, e presumo que essas partilhas tenham gerado um efeito bola de neve, pois o post não tardou a chegar ao conhecimento da imprensa, e da própria Porto Editora. Por esta questão ter [justificadamente] despertado a atenção do público, creio que a ocasião propicia um debate amplo na sociedade civil, e sobretudo a tomada urgente de medidas por parte da tutela no sentido de por cobro ao uso do sistema de ensino como veículo de propagação de ideologia colonialista e racista. Para clarificar o que está em jogo, importa determo-nos no excerto do livro que motivou tanta indignação, o que irei fazer comentando dois aspetos interconexos: 1. As representações veiculadas no livro; 2. O projeto pedagógico implícito.

De acordo com os autores deste livro (e com a editora), apenas os portugueses merecem ser representados como agentes da História. Todos os restantes povos foram encontrados – sendo que o livro parece reproduzir o preconceito que atribui aos portugueses do séc. XV, ao reiterar a ideia de que os “consideravam pouco desenvolvidos a nível cultural”. Na verdade, o livro reproduz sobre africanos, asiáticos e ameríndios o discurso racista e racialista do séc. XIX, e fá-lo usando uma técnica retórica que encoraja a memorização de informação transmitida de forma acrítica, que permite a repetição da frase “relações amigáveis e pacíficas” três vezes, como num mantra.

Já de si isto seria problemático em termos pedagógicos, pois é assim que as ideias se fazem carne, mas é também condenável em termos científicos e éticos: o confronto com as fontes históricas não permite deduzir o carácter “amigável e pacífico” dos encontros referidos, e, além disso, ensinar a mentira histórica não é compatível com a aprendizagem de uma vivência democrática. Depois, é sintomático que o termo “raça”, correspondente a um conceito cuja dimensão biológica foi há décadas desacreditada, apenas se use em relação aos africanos; mas a memorização estende-se a todos os povos não-europeus, com expressões como “ainda eram nómadas e recoletores”.

Por outro lado, e num outro quadro, os autores do livro naturalizam a escravização de africanos, ao colocarem o termo “escravos” na coluna correspondente aos “Produtos” trazidos para Portugal, como se fosse aceitável que as pessoas sejam tratadas como mercadoria. Como é suposto um aluno português e afrodescendente lidar com esta informação? Mas, para além da desumanização dos povos não-europeus, esta proposta pedagógica promove a menorização mental e cívica dos próprios alunos a que se destina: é como se os jovens portugueses não tivessem o direito a aprender a sua História nacional, qualquer que ela tenha sido, e assim apenas pudessem lidar com uma visão edulcorada da mesma.

Entendem-se as razões pelas quais o Estado Novo tenha decidido inventar toda uma História para substituir aquela que as fontes referem, afinal havia ainda um império a preservar. Que razões presidem à manutenção desta invenção 45 anos após o fim da relação colonial que Portugal manteve com os agora PALOP? Esta é uma questão que não pode continuar a ser escamoteada pela sociedade civil, e muito menos pelo Ministério da Educação.

Interpelada pelo Jornal de Notícias, a Porto Editora achou por bem responder a 10 de maio que “pretendia-se falar dos primeiros contactos, no final do século XV e início do século XVI, e não abarcar todo o ‘decorrer da construção do império’. Infelizmente, nas décadas e séculos seguintes o comércio e sobretudo a ocupação enveredou pelo caminho de atitudes condenáveis, como a desconsideração pelas culturas próprias e a escravatura”.

Esta defesa do indefensável é particularmente preocupante, visto que, ao supostamente invocar o rigor cronológico, limitando o foco do excerto aos sécs. XV e XVI, a PE parece presumir que em relação a esse período o mantra das “relações amigáveis e pacíficas” é historicamente válido. Ora, basta consultarmos uma fonte incontornável para o período, a Crónica de Guiné, de Gomes Eanes de Zurara, para verificarmos o embuste em que os responsáveis pela PE caíram, e têm feito cair tantos alunos.

Selecionei uma de entre tantas possíveis, para ilustração daqueles leitores que nunca tenham tido a oportunidade de ler um texto do séc. XV: “E em acabando estas razões, olharam para a povoação e viram que os Mouros, com suas mulheres e filhos, saiam já quanto podiam de seus alojamentos, porque houveram vista dos contrários. E eles chamando: “Santiago! Sam Jorge! Portugal! Deram sobre eles, matando e prendendo quanto podiam. Ali poderíeis ver madres desamparar filhos, e maridos mulheres, trabalhando cada um de fugir quanto mais podia. E uns se afogavam sob as águas, outros pensavam de guarecer sob suas cabanas, outros escondiam os filhos debaixo de limos, por cuidarem de escapar, onde os depois achavam. [...] Acabada a peleja, louvaram todos Deus, pela muita mercê que lhes fizera, em lhes querer assim dar vitória, e tanto a seu salvo” (Crónica de Guiné, cap. XIX, p. 102).

Seria falacioso responsabilizar em exclusivo a Porto Editora por esta situação, como é falacioso a Porto Editora pretender que o problema se resolve com uma emenda ao excerto em questão. A verdade é que estes livros são recomendados pelas escolas, e que há professores que os impõem aos seus alunos. A pergunta que se me afigura como urgente é: que propósito pedagógico visa este tipo de livro responder?

Outras perguntas se perfilam: como é possível um livro como este não ter passado pelo escrutínio científico dos profissionais da área de História? Porque se continua a investir na memorização de informação transmitida de forma acrítica, ao invés de estimular as capacidades analíticas e o espírito crítico dos alunos? Porque não se expõem os alunos (e, já agora, os seus professores também) ao contacto com as fontes?

Rodney Robinson, professor de jovens encarcerados nas prisões juvenis do estado da Virgínia, recentemente distinguido com o galardão de professor do ano nos EUA, afirma numa entrevista recente: “Uma coisa que faço com a história é analisar as fontes, e sempre olhamos para a voz — qual voz foi excluída, e porquê — e depois tentamos encontrar essa voz. O que requer dos meus alunos que se concentrem e escavem fundo na história e a personalizem, ‘como reagirias tu nesta situação? E achas que esta fonte é credível?’ Portanto, trata-se mesmo de analisar as fontes. [...] a minha função como professor é ensinar os alunos a pensar”. O sistema de ensino norte-americano, por razões que até se depreendem desta entrevista, está longe de ser um produto exportável. Mas quantos são os alunos portugueses em escolas “de elite” que estão, na História como em tantas outras disciplinas, expostos a esta interpelação, e dados a este privilégio? Esta é uma interpelação para alunos, pais, professores, promotores do negócio dos manuais, e, sobretudo, para o Ministério da Educação. A cumplicidade com o atual estado de coisas tem um prazo, que expirou a 25 de Abril de 1974.

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