Uma democracia engraçada: eleições autárquicas na Turquia

A Turquia tem um sistema democrático. Quatro terços desse sistema são falsos.

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Tenho três amigos que são irmãos gémeos monozigóticos. No outro dia encontrei-os na rua. Contaram-me que os pais tiveram uma discussão porque se descobriu que um dos três tinha um pai diferente.

No passado dia 31 de Março, houve eleições autárquicas na Turquia. O partido da oposição republicano, CHP, ganhou em Istambul, Ancara e Esmirna. Desta feita, o partido do Erdogan, AKP, perdeu o controlo de 65% da economia nacional. (Antes das eleições, a oposição detinha câmaras municipais que perfaziam só 19% do PIB.) Para pôr isto em perspectiva: em 2017, o PIB de Istambul foi 266 mil milhões de dólares, em comparação com os 220 mil milhões de dólares de Portugal.

A diferença entre o candidato do CHP para Istambul (Ekrem Imamoglu) e o candidato do AKP (Binali Yildirim) foi à volta de 23 mil votos, num total de 8,5 milhões de votos válidos. O AKP pediu recontagem de votos em todas as 39 zonas de Istambul. Em cinco dessas zonas todos os votos foram contados outra vez, em 34 foram contados outra vez apenas os votos inválidos. A diferença entre os dois candidatos reduziu-se para 14 mil votos. O AKP afirmou que numa das zonas houve irregularidades ligadas ao terrorismo. Apesar disso, a Comissão Nacional de Eleições divulgou os resultados finais e entregou a Câmara Municipal ao CHP.

Então, apareceu o Erdogan. Declarou isto inaceitável, repetiu que houve irregularidades. Aliás, como poderia ser possível o AKP ganhar a assembleia municipal mas perder a câmara? Não podia. Ergo, não pôde.

Assim, no passado dia 6 de Maio a Comissão Nacional de Eleições anulou as eleições para a Câmara Municipal Metropolitana de Istambul e marcou novas eleições para dia 23 de Junho. Razão? A comissão descobrir que em algumas zonas houve presidentes e membros do comité eleitoral (as pessoas que monitorizam as urnas e contam os votos) que não eram funcionários públicos.

Vamos lá a ver. Municípios metropolitanos são ligeiramente mais complicados que o normal de Portugal. Na Turquia há freguesias. Freguesias formam municípios, como Besiktas, de onde eu sou. Besiktas tem uma Câmara Municipal, um presidente e uma Assembleia Municipal. O município de Besiktas faz parte da Câmara Municipal Metropolitana de Istambul, que por sua vez tem também uma Assembleia Municipal Metropolitana e um presidente. É simples, portanto: quando existem milhões e milhões de pessoas que vivem na mesma zona urbana, acrescenta-se mais uma camada ao modelo autárquico. E todas estas camadas foram alvo de eleição ao mesmo tempo, nas eleições autárquicas.

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Agora, a Comissão Nacional de Eleições afirma que a formação dos comités eleitorais em alguns bairros de Istambul não cumpriu a lei. Mas não te enganes: os votos para a Junta de Freguesia e a Câmara Municipal desses mesmos bairros – convenientemente – não foram anulados. Só as eleições para o município metropolitano, onde o AKP perdeu, serão repetidos. Uma lógica elegante, não?

Imagina o seguinte. Vais a um restaurante. Almoças. Pedes a conta. O empregado traz uma conta de 14 euros. Deixas uma nota de 20 euros. O empregado pega no dinheiro. Escrutina com atenção ambas as faces da nota. Chama outro empregado que também examina o dinheiro. Dizem-te então que dez dos euros dessa nota são falsos. Não te devolvem a nota. Dizem apenas que tens que pagar mais 4 euros.

A Turquia tem um sistema democrático. Quatro terços desse sistema são falsos.

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