Não há explicação para a peça de Miguel Bonneville

Cada vez mais saturado do excesso de discurso de que se rodeiam as criações artísticas, Miguel Bonneville apresenta no São Luiz, Lisboa, até 19 de Maio, A Importância de Ser Georges Bataille.

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JOANA LINDA

O primeiro contacto consciente de Miguel Bonneville com Georges Bataille terá acontecido enquanto via, com uma amiga actriz, o filme Week-End, de Jean-Luc Godard. Antes disso, ter-se-á provavelmente cruzado com um ensaio de Marguerite Duras, escritora pela qual se confessa obcecado, acerca do autor francês. Mas só sob o efeito de Godard, e percebendo a inspiração parcial do realizador no erotismo de História do Olho, é que a curiosidade o levou a procurar alguns dos seus livros. Algum tempo depois, enquanto se encontrava em cartaz o filme Minha Mãe (que Christophe Honoré rodou com Isabelle Huppert, a partir do romance homónimo de Bataille), Bonneville voltou a mergulhar na sua obra e tentou, pela primeira vez, relacionar-se artisticamente com ela. Inspirado por Bataille e por Crash, de David Cronenberg, assistiu a várias sessões do filme em registo de “auto-performance”. Recolhia adereços e dirigia-se ao cinema, “sempre propósito nenhum, só como experiência”, encarnando uma qualquer personagem que se aproximava daquelas “figuras meio destruídas, à procura de qualquer coisa fora do comum e do quotidiano”, recorda em conversa com o PÚBLICO.

Entretanto, em 2013, Miguel Bonneville iniciou uma série intitulada A Importância de Ser, na qual, a partir da obra de autores que pensaram – ou pensam ainda – sobre o seu tempo, o artista ia questionando o seu próprio lugar neste tempo e neste espaço. Depois de António de Macedo, Simone de Beauvoir, Agustina Bessa-Luís e Paul B. Preciado, é agora a vez de se deixar contaminar pela obra de Georges Bataille e perceber o que resulta desse encontro: eis A Importância de Ser Georges Bataille, em cena na Sala Mário Viegas, do Teatro São Luiz, Lisboa, entre 14 e 19 de Maio.

No segundo espectáculo construído em torno de Preciado, Arquipélago (2017), Miguel dava por si “um bocadinho zangado” com o seu objecto de estudo artístico, como se estivesse já na fase pós-ruptura amorosa, depois de um intenso momento de enamoramento. Bataille começou então a surgir como um escape, uma fuga daquela relação a caminho do enterro. “Até porque ele [Bataille] toca em tudo o que me interessa e de uma forma muito poética”, reflecte agora. “Ele pega na filosofia para fazer uma filosofia que não é sistemática nem académica, liga-se ao budismo, ao ioga, a uma espécie de misticismo. Vai buscar aquilo que lhe serve para uma busca pessoal de transgressão e para ir além do comum, do banal, daquilo que nos rodeia.”

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JOANA LINDA

Na penumbra das grutas

Num primeiro momento de aproximação ao universo de Bataille, durante uma residência de três meses em França, Miguel Bonneville acabou por criar não um espectáculo, mas um livro. Dissecação de Um Cisne resulta de um processo em que Miguel começou a escrever um guião para um filme. “A certa altura percebi que aquilo não era suficiente ou nem sequer me via no papel de alguém que estava a criar aquele guião”, conta. “Então inventei um realizador que pudesse realizar esse filme e continuei a escrever o guião. Depois, para se perceber melhor quem era o realizador, inventei um crítico que escreveu sobre o realizador – que era, claro, obcecado pelo Bataille. E foi uma construção constante de ficções para tentar perceber onde queria chegar.”

Talvez por ter gastado tantas palavras a escrever Dissecação de Um Cisne, quando chegou a altura de reunir o grupo de intérpretes (Afonso Santos, Vanda Cerejo, Catarina Feijão e Francisco Rolo) com quem criou A Importância de Ser Georges Bataille, Miguel Bonneville transportou dessa experiência passada apenas “a ideia de entrar num lugar desconhecido, num sítio não muito controlado, em que há sempre alguma coisa de tensão sexual ou de morte – de forma nunca explícita”. E é precisamente a recusa de racionalidade que sobressai numa peça toda ela passada na penumbra, protagonizada por seres vestidos de preto sobre um cenário preto – adornado por uma estranha figura inflada preta –, numa recusa sistemática de qualquer explicação. “Hoje em dia é tudo demasiado explicado”, queixa-se Bonneville. “Vamos ver uma exposição e temos a história toda do quadro – quem fez, porquê, em que época, onde –, não nos permitem desfrutar, temos de ter sempre muita informação antes e depois, dizermos se gostámos ou não, e acho que isso retira a força das obras. Não nos permite vê-las sem esta coisa meio escolar.”

Em fuga dessa clarificação persistente que ofusca mais do que esclarece, Miguel Bonneville seguiu ainda pistas do primitivismo e da arte rupestre, visitando as grutas pré-históricas da Cantábria, na tentativa de “entrar na noite, ir à procura da sombra”. Fragmentos que emergem nos movimentos obsessivos e primários que, por vezes, tomam conta de A Importância de Ser Georges Bataille, uma peça em que Bonneville privilegia, de forma inequívoca, o mistério, o desconhecido, aquilo que carece de descodificação. Sem querer dar lições de moral, reivindica apenas a abstracção que encontra na música e a procura pelos “recantos onde ainda se esconde” a liberdade. Mesmo que tenha uma cara ameaçadora. Afinal, é quase sempre essa a cara do desconhecido.

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