Da dança que grita a vida à dança que nos volta as costas

Duas criações da coreógrafa Alice Ripoll trouxeram ao DDD — Festival Dias da Dança as fracturas do Brasil.

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Cria RENATO MANGOLIN

Cria e aCORdo, as mais recentes criações da coreógrafa brasileira Alice Ripoll, respectivamente com a Cia. Suave e a Cia. Rec., foram apresentadas no âmbito do DDD —​ Festival Dias da Dança. Polissémicas e fracturantes, a sua exibição no mesmo festival forçou o contraste entre a exuberante explosão de energia de Cria, onde se dança a potência da singularidade e a alegria dos colectivos, e a melancolia do abismo da desigualdade de aCORdo, que nos devolve a perpetuação da violência racial e política.

Num palco despido e iluminado por focos de luz quente, com figurinos que combinam a exuberância das lantejoulas com o relaxamento do calção, movimentos de dança que surgiram nas favelas do Rio de Janeiro, como a dancinha — herdeira do “passinho”, numa fusão do funk brasileiro com break-dance, hip-hop e capoeira —, Cria propõe um salto de uma qualquer rua da periferia do Rio, onde a música e a dança são tão naturais e intuitivas como o aprender a falar, para o palco da dança contemporânea, reinventando-a.

Organizada em três momentos, a peça começa com travessias dos bailarinos no fundo da cena, exibindo exímias performances coreográficas ao ritmo do funk brasileiro, com sonoridades do berimbau e batuques da capoeira. O segundo momento é mais teatral, onde se exploram tanto estratégias colectivas de suporte, afecto e humor, como políticas de representação de corpos e géneros não-normativos. O terceiro momento retorna à catarse do primeiro, com a singularidade de cada um a articular-se na pluralidade de diversos corpos, em êxtase colectivo.

Trata-se de um gesto político, trazer para o palco corpos de dez bailarinos, todos negros e com conexões às favelas do Rio ou de São Paulo, numa dança que quase grita de tão vibrante, e no contexto intimidante deste Brasil de Bolsonaro. Um país que anunciava já o seu radicalismo quando assistiu em Março de 2018 ao assassinato de Marielle Franco, a política negra, queer que, oriunda de uma favela, dava voz à população discriminada num dos países mais desiguais. Um país radicalizado à direita e racista, onde uma minoria milionária controla os média, propagando discursos inflamados de agressão racial e de género.

E é precisamente a vida que se evoca nesta proposta que investiga a potencialidade da palavra “criação”: “cria-filha”, “cria” de força criativa, as “crias” da comunidade que são os filhos das favelas onde nasceram e foram “criados”, ou as “crias” que somos todos nós, fruto dessa dança fulgurante que é o sexo. É essa força de vida, descarada e afirmativa, que Alice Ripoll nos mostra, porque #black lives matter em todo o lado. E o Brasil que vemos naqueles corpos que dançam extravasa o continente americano e é também África, devolvendo-nos um espelho implacável que exige a urgente reescrita a várias vozes da história de séculos de colonialismo português e de escravatura, perpetuada nas formas de poder biopolítico que continuam a traçar a fractura abissal entre vidas, classes e raças no Brasil contemporâneo.

Em resposta a um convite à coreógrafa integrado na ocupação “Que Legado”, realizada no Castelinho do Flamengo (Rio de Janeiro) para reflectir sobre o que ficou para a cidade de eventos como o Mundial de Futebol e os Jogos Olímpicos, aCORdo vem confirmar um corpo de trabalho que não necessita de estratégias coreográficas muito complexas para implicar e afectar o público. Com amplos significados, aCORdo podem ser os “acordos” sociais que nos condicionam, o “acordar” implícito no estado de alerta, ou ainda, pode ler-se “a-COR-do”, sublinhando a cor negra da pele dos intérpretes, todos eles de uma favela do Rio.

Num espaço cénico despido de desenho de luz ou som, uma plateia reduzida a 40 cadeiras dispõe-se em U em torno dos intérpretes, que vestem figurinos de trabalho em azul e cinza. A dramaturgia, simples, organiza-se em três momentos: no primeiro, os performers estão sentados no chão adormecidos, encostados à parede ou reclinados uns sobre os outros, evocando os sem-abrigo que fazem da rua casa. Vão mudando de posição e encaixando-se uns nos outros, até um segundo momento, onde já erguidos prosseguem em movimentos de suporte e de encaixe, numa dança entre o individual e o colectivo, evocando ora o ritmo da dança, ora o peso da morte quando sustentam o corpo de um deles em abandono. O terceiro momento inaugura a interacção directa com o público: um performer pega noutro ao colo e abandona-o sobre os colos de membros do público, até que este desliza para o chão e vai repetindo o movimento de erguer e depositar o corpo de outro, sucessivamente. E por fim, um a um, os performers começam a retirar pertences às pessoas do público: uma bolsa, uma carteira, um telemóvel, um anel, um relógio, um colar, um casaco... que deslocam para outra pessoa do público, ou colocam nos seus próprios bolsos. Terminam a peça voltados contra a parede, mãos ao alto, em posição de revista policial. Instala-se o silêncio, e invertem-se os papéis, quando tem de ser o público a revistar os bolsos dos intérpretes para reaver os objectos.

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aCORdo DR

Com uma estratégia muito simples e quase banal, Ripoll coloca o público num lugar complexo entre culpa e compaixão, trazendo para cena experiências que se tornaram quotidianas para quem vivia na periferia do Rio durante os grandes eventos internacionais, sujeito a um aparato policial de intimidação e humilhação na passagem de todas as favelas para a cidade, com revistas permanentes que condicionavam a passagem, induzindo a circulação somente entre favelas. Um controlo geo- e biopolítico dos seus corpos, em prol de uma higienização social da cidade, permitindo abusos de poder que resultaram na morte de muitos civis, entre eles crianças.

Contra a parede, os intérpretes não estão numa posição de fragilidade, mas de desafio, vulnerabilizando o público que permanece confuso e perturbado. Batem-se palmas, e os intérpretes permanecem imóveis e de costas voltadas até que o público abandone a sala.

Em dança, qualquer corpo em cena é um gesto político, e Cria e aCORdo inscrevem-se nessa premissa. Cria é um grito de elogio a todas as crias e criações, sobretudo, àquelas que com Alice Ripoll “criam”, convocando o afecto e a energia de viver como força de resistência política. E aCORdo existe entre a contemplação e o confronto, entre a dádiva e o desafio a um público, também ele maioritariamente branco e privilegiado, convocando a sua responsabilidade política.

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