Violência doméstica: vítimas não pedem ajuda e riscos são mal calculados

Nenhuma das mulheres mortas em 2018 pelos seus companheiros tinha pedido antes apoio à APAV. E o mesmo aconteceu com as que foram vítimas de homicídio na forma tentada.

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Protesto contra a violência doméstica no Porto Adriano Miranda

O número crescente de mulheres assassinadas por homens com quem tinham ou tiveram uma relação conjugal indica que a avaliação de risco da situação em que se encontravam não foi feita, seja porque as vítimas não pediram apoio antes ou porque o perigo foi mal equacionado pelas instituições que contactaram.

O alerta é do gestor da Rede de Apoio a Familiares e Amigos de Vítimas de Homicídio e de Terrorismo (RAFAVHVT), Bruno Brito, que no seu último relatório, divulgado nesta segunda-feira, dá conta de que dos 87 homicídios noticiados pela comunicação social em 2018, certa de 37% ocorreram em contextos de violência doméstica. E q ue na maioria dos casos (20) as vítimas eram do sexo feminino.

Olhando mais de perto surge também esta característica: “Cerca de 1 em cada 4 homicídios [noticiados em 2018] dizem respeito a uma situação de morte de uma mulher em contexto de um relacionamento de intimidade que ainda se mantinha ou que, entretanto, já tinha cessado. Infelizmente a situação ainda poderá ser pior este ano, já que até agora se tem registado um pico de mulheres mortas em relações de intimidade”, constata Bruno Brito.

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Só nos primeiros três meses de 2019, mais de 10 mulheres foram assassinadas pelos maridos, namorados ou ex-companheiros. Nas escalas de avaliação que são utilizadas pelas instituições judiciais e de apoio às vítimas, a separação ou tentativa de separação é apresentada como um factor de alto risco. A ocorrência de agressões anteriores é também um forte preditor ou, dito de outro modo, muitas das mulheres vítimas de violência doméstica acabam por ser mortas “após longos períodos de abusos coercivos”, conforme é destacado pela psicóloga forense Iris Almeida numa apresentação publicada pelo Centro de Estudos Judiciários.

No relatório divulgado nesta segunda-feira explica-se que sempre que a comunicação social dá conta de um homicídio registado em contexto de violência doméstica, “a RAFAVHVT verifica se o caso já tinha sido acompanhado na Associação Portuguesa de Apoio à Vítima (APAV), que é uma instituição de referência” nesta área. Por via desta verificação já se concluiu que “são muito raros os casos em que isso aconteceu”. E em 2018 não se verificou em nenhuma situação tanto no que respeita aos homicídios consumados, como aos homicídios de forma tentada ocorridos numa relação de intimidade.

Das 28 vítimas de homicídios de forma tentada, as 11 que mantinham ou tinham mantido uma relação conjugal com o agressor só começaram a ser acompanhadas pela APAV depois de o crime ter ocorrido. Bruno Brito refere que esta ausência prévia de pedidos de apoio se deve a um “conjunto de circunstâncias”: “uma noção enviesada do risco por parte das vítimas, um sentimento de vergonha e o facto de terem muito medo de que possa acontecer alguma coisa mais” no caso de exporem a situação.

Os dados constantes no relatório divulgado nesta segunda-feira dão também conta de uma relação de proporção inversa quanto ao género dominante entre os alegados autores dos homicídios e os utentes que beneficiaram do apoio da RAFAVHT em 2018. No primeiro caso, os homens estão em maioria (62%). No segundo caso as mulheres representam 74% dos utentes. Isto apesar desta rede, criada há sete anos, não restringir o seu apoio às vítimas de violência doméstica, alargando-o a todos os que foram alvo de homicídio de forma tentada e aos “familiares e amigos” que foram afectados por estes crimes.

“São situações que têm um grande impacto na vida das pessoas, tanto do ponto de vista psicológico como emocional e que carecem de apoio especializado”, refere Bruno Brito. Este apoio passa pelo acompanhamento de psicólogos, de juristas e de assistentes sociais, que prestam ajuda na via sacra que geralmente se segue a estes crimes seja pela demora da justiça ou pela dificuldade em instruir os processos relativos às indemnizações previstas na lei para as vítimas de crimes violentos.

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