As praxes somos nós

Todos os anos é a mesma coisa. Estudantes de capas pretas humilham outros que no ano seguinte farão o mesmo a outro grupo. Às vezes, sempre que existem episódios mais grotescos, seguem-se as discussões públicas. Uns valorizam. “É um importante ritual de passagem”. Outros relativizam. “Afinal já todos fomos assim.” Outros insurgem-se. “Bando de energúmenos!” E discutem-se responsabilidades. “Estás-lhes no sangue! É da educação que recebem em casa! A Universidade é que os incentiva!”

Raramente o foco somos nós, os cidadãos, o colectivo, a sociedade. Não se trata de desculpabilizar comportamentos que merecem reprovação, nem de desresponsabilizar a Academia que deveria posicionar-se de forma categórica contra práticas reprováveis. Mas seria importante perceber porque nada muda. Não será porque naqueles rituais está contido parte do que somos? Nas praxes identificamos algozes e vítimas. O quotidiano de violência que todos experienciamos é mais difuso. Não possui muitas vezes sintomas visíveis. Mas a razão que lhes preside é a mesma.

É confortável olhar para as praxes como um microcosmos. Mas se alargarmos o raio de acção? Ninguém gosta de olhar para as praxes como se estivesse ao espelho, mas talvez tivéssemos a ganhar se o fizéssemos, porque são em muitas circunstâncias apenas a reprodução encenada da nossa vida colectiva e das relações sociais um pouco por todo o lado.

Aqueles estudantes, os que praxam e os que são praxados, para depois também praxarem, somos nós. Está lá tudo. Os jogos de poder. A competitividade extrema. A indiferença. A ausência de cooperação. O salve-se quem puder perante a lógica mercantilista. A disputa de um espaço a todo o custo, aniquilando o outro. O sofrimento como valor de ascensão social. A ideia de que as relações têm de ser hierárquicas e não podem ser de igual para igual. A redução da vida em comunidade à lógica do senhor e escravo. Uma escravidão assente no poder do capital.

Perguntamo-nos porque é que os estudantes que são alvo de violência se deixam submeter. Da mesma maneira que interrogamos porque é que os portugueses perante a exclusão, a precariedade, as desigualdades ou os salários miseráveis não se revoltam? Por norma recorremos a justificações identitárias místicas como se tudo fosse uma fatalidade ou nos estivesse nos genes – fica sempre bem citar partes escolhidas a dedo de obras de Eduardo Lourenço, se bem que nos últimos anos José Gil também fique bem – e esquecemo-nos que existem condições socioeconómicas sistémicas e objectivas para esse tipo de comportamentos sujeitados.

Os defensores das praxes falam do seu valor de integração, argumentando com o sacrifício, o sofrimento ou a afirmação individual, ou seja a linguagem de controlo, como valores a incutir. Não é isso que é veiculado também pelo ambiente neoliberal à nossa volta e por algumas elites que vivem na sua bolha? O miserabilismo relacional que as praxes evidenciam (e também se poderia falar das viagens de finalistas, vividas como inevitabilidade na qual todos têm de embarcar), está presente à nossa volta, como se apenas conseguíssemos criar espaço para vivermos num mundo onde há vítimas e agressores, onde para uns terem uma vida sumptuosa ou outros têm de ser excluídos e encostados à parede.

Todos os anos voltamos às praxes como se fossem momentos de excepção. Será que é mesmo assim? A violência que elas simulam está presente no nosso quotidiano. Interrogá-las de forma séria implicava pormo-nos em causa também. Até para percebermos que não tem de ser assim. Felizmente existem outras formas relacionais possíveis. Oxalá consigamos afirmá-las, não desistindo de pensar noutras formas de existir.

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