Golpe de teatro

Costa realizou um “golpe de teatro”, é mestre. É portanto um putchista dramático e os deuteragonistas andam lixados, apanhados na peripécia.

Quando o vocabulário revela desajuste entre sujeito e objecto, emissor e território temático, a esquizo-semantica instala-se e prova que estamos sempre a falar do que não é, ao lado, não no alvo. Diz-se que ver o olho do furacão o explica, aqui andamos regularmente na hipertrofia temática do que espuma. A necessidade que se verifica, neste estado de crise endémica - à crise sucedem-se sem pausa crises de engrenagem -, de recorrer constantemente a um vocabulário do teatro para falar de um real sem rédea, entrópico, prova que a política se esvaziou, esgotou-se na saturação promovida pelo ciclo corrente da dança das agendas - esse vocabulário do “teatro”, sem contexto que seja chamar drama e teatro ao que não o é, é um efeito expressivo desprovido de força analítica e mentiroso acerca do que seja o teatro.

A política meteorologizou-se, está também refém de um aquecimento glocal, que é, de algum modo, uma espécie de sociopatia partilhada mediaticamente, o desenvolvimento constante de um tipo de narrativa básico assente na forma intriga mais unilinear.

“É uma encenação”, “não sou actriz”, dizia Ferreira Leite há anos (felizmente que não é) - “é uma dramatização”, “protagonista principal” (esta é óptima) - e agora o extraordinário “golpe de teatro”.

Costa realizou um “golpe de teatro”, é mestre. É portanto um putchista dramático e os deuteragonistas andam lixados, apanhados na peripécia.

Andava aí uma coisa, genericamente chamada de sondagens, cujos resultados, por prestidigitação mediático-golpista, se converteram provavelmente noutra, dizem, diz-se - esse diz-se é bestial pois sem fonte cumpre alegremente a sua irresponsabilidade agente. A próxima sondagem o dirá. Vivemos mais presos dessa ciência trissemanal dos números que do combate de ideias e projectos, tudo se passa numa pobre intriga interpartidária, nada se passa. É esse nada, passividade instalada de uma pulsão ideal necessária, polémica - Pólis - que converte o plexo eleitoral numa narrativa sem norte, sem ir a lado algum, sem finalidade. O que está é para ficar e esse para ficar piora as coisas. Tudo desanda, digamo-lo. É o que temos verificado por aí fora com o fechamento sectário e nacionalista na Europa, o que têm chamado de populismo e todos são contra, principalmente os populistas.

É porventura esse vazio que puxa o vocabulário do teatro. Metáforas? Estafadas, completamente, É aplicar expressões românticas a um contexto pós moderno de devastação global, não de fim da história - nem das histórias, multiplicam-se, de aviário, vêm de uma central sem cérebro, em série, o mundo de kafka é operacional - mas de fim de planeta.

O que quer isto dizer, esta redução do vocabulário do momento - já longo - a um vocabulário do teatro? Que o “comentário”, ele próprio, é o espectáculo e que o espectáculo não gerou ainda um vocabulário crítico próprio, segue pobre de espírito a “agenda”, as tramas de bastidor, as quedas e ressurreições dos líderes - as políticas têm “rostos” e os rostos andam aí pelos ecrãs, obsessivamente, tem busca do horário nobre. In vídeo véritas. Será? Não correm contra um muro - há sempre um - dentro de um autocarro desgovernado, como diz Motton, no seu Um monólogo?

Tudo isto fede a anacrónico, no mau sentido, pois há um sentido positivo, que é o de não falarmos das coisas em cima delas com os termos - factos e palavras, nomes e coisas - que elas segregam, e pelo contrário, colocarmo-nos na distância que permite ver, essa distância é informada, e permite o que se vê “a frio” evidenciar-se na clareza da distância, como a Clairon de Diderot no Paradoxo se diz que fazia por oposição à Dumesnil. Enquanto uma representava a frio e isso desencadeava emoções “racionais” e sinceras nos espectadores, a outra, hiperdramática no jogo, cegava-os. 

A mim que sou encenador chateia-me este roubo de termos. Inventem outro vocabulário, a realidade necessita da vossa imaginação, não da falta dela. Também ajuda à clarificação. A análise também é ficção, mas rigorosa, sem o pequeninismo do comportamento reactivo, automático, pavloviano, não autónomo. É isso que faz a malfadada e insuportável “agenda”, pobreza do debate preso a uma corrida estruturada cegamente em direcção a nada. O modo como tudo se responde e corresponde faz agir em nós esse mal-estar e essa demência senil-ademocrática. A democracia fica obtusa, obscurece, a burrice multiplica a palha, é o seu móbil.

Encenação, digo-vos, é o contrário de mentir e ocultar, é desocultar e revelar, tornar visível o que está detrás, expor a manipulação - como em Shakespeare se mostra e demonstra, em Medida por Medida ou no Ricardo III, peças sobre o poder e a manipulação. Essa encenação de que falam é outra coisa que nada tem com a encenação - Stanislavski, Evreinov, Piscator, Reignhardt, Pirandello, Brecht, Strehler, Vitez, etc, grandes pensadores, é a ideia de quem julga que, no teatro, se é enganado, levado pela peripécia e pelo impacto das aparências, pelo sentimento imposto do palco - seria alto, como nas sociedades recreativas. Isso não existe no teatro actual - infelizmente. algum, só performativo e “escandaloso”, ultramediático, publicidade certamente artística e “sublime” de egonarcisismos vulgares, como outros, pois -, existiu porventura no melodrama, o que mal sabemos, mas conhecemos até da pintura: aquelas lágrimas a correr no parterre e a Sarah Bernhardt lá no alto, no proscénio, a esmagar-nos de sentimento com doses magistrais de base - e a pintura borrada, vista a olho.

Golpe de teatro? Mas estamos no século XIX? Portugal é o São Carlos?

Assumam-se barítonos e baixos, tenores se os gasganetes lá chegarem, o espectáculo na floresta mediática é um “teatro” mais parecido com esse canto, e o mármore de Carrara ajuda, em convívio pronto-a-vestir e socialmente mais perto dos Passos Perdidos.

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