Para Alan Hollinghurst a viagem pode parecer uma “ameaça metafísica”

Um escritor, um tradutor e um jornalista debateram a viagem, a que se faz fisicamente e a que se faz quando se lê e quando se escreve. Tema clássico em mais uma edição do LeV, o festival literário de Matosinhos, e com sala cheia.

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Alan Hollinghurst em Matosinhos Francisco Teixeira/Festival Literatura em Viagem
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Alan Hollinghurst (ao centro), entre Frederico Loureço (à esq.) e Oliver Blach Francisco Teixeira/Festival Literatura em Viagem

A viagem – que já foi iniciática, utilitária ou de descoberta e exploração – parece ter-se tornado hoje um fim em si mesma, uma futilidade consumista. O prestígio popular de que goza é avassalador, como talvez o comprovem certos concursos televisivos, nos quais toda a gente parece ter sempre uma viagem “de sonho” por cumprir. Pois já ninguém se contenta com uma viagem de barco de Lisboa até Santarém e menos ainda com uma viagem à volta do seu quarto. Que o digam as companhias de aviação de baixo custo.

Daí que nos tenha merecido particular interesse um dos temas da 13.ª edição do festival Literatura em Viagem (LeV), que se realizou durante o fim-de-semana em Matosinhos: “A literatura como viagem”. Embora tal tema convide também ao lugar-comum — como notou, aliás, um dos intervenientes na conversa, o escritor britânico Alan Hollinghurst, ao aludir ao “cliché” implícito naquela imagem —, não deixa de poder operar uma certa inversão: em vez de se falar da viagem como objecto e pretexto para a escrita (a “literatura de viagens") e para a leitura (os livros para as férias, etc.), falou-se, entre outras coisas, da escrita e da leitura como veículos da viagem.

O Festival Literário de Matosinhos — organizado pela autarquia e produzido pela empresa Booktailors — realizou-se este ano no Teatro Constantino Nery, e a sala esteve praticamente cheia para ouvir e ver Hollinghurst e Frederico Lourenço, numa conversa moderada por Oliver Balch, um jornalista inglês a viver actualmente no Porto. O autor de A Linha da Beleza e de O Caso Sparsholt, cujo sucesso internacional o levou já a “viajar por toda a parte”, mostrou-se pouco fascinado, hoje, pela ideia de viajar: “É difícil de descrever. Não tem nada que ver com o medo de voar ou qualquer coisa semelhante, é mais como se fosse uma ameaça metafísica.” Também o tradutor português de Homero e da Bíblia confessou não ser hoje “um viajante entusiasta”. Viajou mais quando era mais novo. Foi, por exemplo, várias vezes à Grécia, “obviamente”, mas sente que, agora, a ideia de viajar lhe causa “uma espécie de stress” que prefere evitar, sempre que pode fazê-lo: “Prefiro viajar mentalmente.”

Balch aproveitou para perguntar a Hollinghurst se procura adequar as suas leituras às viagens que tem de fazer (assim como quem pergunta se quando vem a Portugal traz na bagagem um Saramago ou um Lobo Antunes). “Pelo contrário, faço exactamente o oposto”, respondeu o escritor inglês, dizendo que prefere “ler Thomas Hardy em Veneza e Proust na África do Sul, por exemplo”. Aliás, e embora “leve habitualmente um romance na bagagem”, é costume regressar “com dez páginas lidas”. Interrogado sobre se as suas viagens (físicas) pela paisagem e pela geografia gregas lhe teriam sido úteis para traduzir a Ilíada e a Odisseia, Frederico Lourenço falou daquele famoso mar homérico da cor do vinho, contando que uma vez, ao viajar de uma ilha grega para outra, reparou de repente que, ao redor do navio, o mar tinha de facto a cor do vinho: “Foi espantoso. O Atlântico nunca parece cor de vinho, mas o Mar Egeu, em certas alturas do ano, sob certas condições de luz, parece de facto da cor do vinho, e verificar isso foi importante para mim.”

Gerir paixões

Falar da “literatura como viagem” é falar de uma imobilidade que nos move. Haverá melhor viagem do que aquela que podemos fazer sem sairmos do lugar onde estamos? “Quem foi que disse que podemos conhecer o mundo inteiro sem sairmos de casa?” — indagou Lourenço. Foi Pascal ou Descartes? Eis uma das vantagens de viajar pela leitura: “O que é interessante, quando lemos livros escritos há mil ou há dois mil anos, quando lemos as chamadas línguas mortas, é que elas dão vida a um mundo que é, na verdade, bastante diferente daquele que conseguimos ver quando o lemos nas línguas modernas. Ler é uma forma de viajar.” E escrever também, certamente.

Falou-se ainda de certas paixões, comuns a Alan Hollinghurst e a Frederico Lourenço. Henry James, por exemplo, que “é, sobretudo, um analista supremo do comportamento humano”, como o definiu Hollinghurst, embora não seja menos exímio na “análise da forma” novelesca. Uma fascinação que chega a ser “perigosa”, disse Lourenço, fascinação que também sentiu por Wagner. Hollinghurst, que aprecia as analogias musicais, gosta de pensar nos seus quatro primeiros romances como outros tantos andamentos de uma sinfonia. E voltou a falar-se da viagem como metáfora da iniciação e do amadurecimento pessoal. Porém, Frederico Lourenço lembrou que a individuação psicológica moderna talvez não seja a melhor forma de abordar as personagens homéricas e aludiu ao debate corrente entre os classicistas: talvez a odisseica viagem não tenha, afinal, mudado Ulisses. O que o tornaria (digo eu) estranhamente próximo dos turistas nossos contemporâneos.

A “mesa” que reuniu Hollinghurst, Lourenço e Balch foi precedida por uma conversa — guiada por Pedro Vieira — com dois viajantes que, depois de muito terem viajado, voltaram, denodadamente, à pátria: o jornalista e tradutor José Milhazes e o líder da banda de “heavy metal” Moonspell, Fernando Ribeiro. A seguir, o jornalista e escritor Fernando Dacosta e o realizador Fernando Vendrell falaram sobre Natália Correia, Vera Lagoa e Snu Abecassis na literatura e na cinematografia contemporâneas. Ontem, Filipa Melo entrevistou ao vivo o escritor Michael Cunningham e houve ainda lugar para debates e conversas com João Canijo, Rui Tavares, Carlos Fiolhais e Rui Agostinho. A viagem continuará. No próximo ano.

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