Elogio do (possível) fracasso em ciência

Aproximar o mais possível a investigação científica avançada do ensino universitário pré-graduado tem de ser o objetivo mais indiscutível do ensino superior. Mas, por mais leituras, esforço e curiosidade natural, há limites para a ação de um qualquer indivíduo que não passem pela sua própria área, o que acaba por ser redutor.

Trazer para as aulas exemplos variados de percursos e carreiras pode ser uma excelente maneira de motivar alunos para diversos tipos de carreiras em ciência, incluindo opções distintas das “clássicas”, nas quais é completamente impossível que todos possam ter lugar, do mesmo modo que só uma minoria de jogadores dos juniores faz carreira profissional. O ideal é que adquiram ferramentas metodológicas rigorosas e perspetivas diversificadas, úteis para quaisquer percursos que venham a escolher. E estes têm, naturalmente, de existir.

Este ano escolhi um conjunto heterogéneo de investigadores para inspirar alunos de licenciatura, quer com os seus percursos profissionais, quer com as igualmente relevantes (mas muitas vezes desprezadas, erradamente, por não serem “científicas”) opções pessoais. E talvez o caso mais interessante tenha sido o de uma colega que abandonou por completo a academia, apostando na criação do uma empresa na área da biotecnologia médica. Não pelo percurso, de modo algum único. Mas porque a investigadora e empreendedora, após descrever em detalhe a abordagem técnica, o valor da inovação criada e o modelo de negócio, teve a frontalidade de assumir que a sua empresa, pela qual luta há muitos anos, e com a qual ganhou com mérito tudo o que seria possível conseguir nesta fase (quer do ponto de vista nacional quer europeu), poderá ser inviável a curto-médio prazo. Assumiu, no fundo, que havia uma possibilidade real de fracasso.

Foi um choque palpável para alunos preparados apenas para ouvir narrativas de sucesso, fixado numa pergunta tão ingénua quanto importante de um deles: “Mas, se isso acontecer, como vai alimentar os seus dois filhos?” A resposta tem várias camadas. Desde logo que não se deve ignorar a realidade inegável da maioria das start-ups de facto falhar (e não falhar espetacularmente, de forma a merecer notícia). Mas, sobretudo, que a investigadora ganhou com o seu percurso competências únicas, que a tornam uma candidata excelente a vários tipos de empregos (se calhar até com menor stress), potencialmente garantindo alimentação condigna à sua descendência.

Por último, que há outros percursos em ciência, porventura menos inspiradores, mas mais seguros desse ponto de vista. Talvez não se possa esperar deles grande criatividade, mas é essa a matriz de trabalhos técnicos ou por encomenda. Tão úteis como trabalhos de investigação de ponta, e que também merecem promoção. Bem-vindos ao mundo real, onde é preciso fazer escolhas, e muito pouco está garantido.

E isto é verdade com qualquer aposta em ciência (e não só). Por mais trabalhadas que sejam as estratégias, nunca se pode saber se vão mesmo resultar, e raramente funcionam como pensado. Na verdade, copiar e implementar acriticamente modelos sem pensar no contexto nacional é, quase sempre, uma má receita. Mas, mesmo que tudo corresse bem, o risco de fracasso existe; é uma parte intrínseca do processo, que não podemos nem devemos escamotear.

É preciso perceber que muito do investimento em ciência (seja “básica” ou “aplicada”) ou empreendedorismo não vai atingir todos os objetivos a que se propôs, mas, desde que devidamente enquadrado e com processos sérios e consequentes de acompanhamento, monitorização e avaliação, vai conduzir a outros caminhos e novas oportunidades, a soluções melhores, a quadros mais bem preparados, precisamente porque aprenderam a lidar com dificuldades. E isso (também) aumenta a competitividade e a inovação. Ter medo de falhar e branquear o insucesso é que pode ter custos. Se não soubermos transmitir isso aos nossos alunos, como vamos ser capazes de comunicar esta realidade, à superfície muito pouco agradável, a outros públicos?

Nas pós-graduações (mestrado, doutoramento) a ligação do ensino à investigação (incluindo esta componente) é, ou deve ser, inevitável, mas tem de ser feita mais cedo, até ao nível do ensino secundário, sobretudo para contrariar a imagem idealizada e irrealista com que os alunos nos chegam. E a culpa não é certamente dos próprios alunos, muito menos dos seus professores, que, para além de poderem não ter formação ou apoio específico a este nível, têm de dar a “matéria” a toque de caixa. Algo que só é possível utilizando narrativas “pasteurizadas” de ciência, que são perfeitamente defensáveis, mas nas quais o progresso tende a ser certo, seguro e linear; os exemplos foram escolhidos (e trabalhados) para encaixar com perfeição nos conceitos sem levantar grandes questões; e faltam perspetivas transdisciplinares ou enquadramento sociocultural.

Ora, a investigação verdadeiramente disruptiva é o oposto disso tudo. É muitas vezes um risco com o qual aprendemos sempre, desde que estejamos disponíveis. Citando Samuel Beckett: podemos falhar, mas, da próxima vez, falharemos melhor. Não é bem ir de derrota em derrota, até à vitória final; mas perceber que falhar não é necessariamente perder.

O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico

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