“Não estamos a pedir o céu”, dizem milhares de funcionários públicos em Lisboa

Foi “uma coincidência das boas”: no dia em que foi chumbada no Parlamento a recuperação integral do tempo de serviço dos professores, saiu à rua em Lisboa uma manifestação da função pública, com trabalhadores de todo o país e “com mais razão ainda”. Exigem melhores condições laborais e, sobretudo, uma dignificação dos seus trabalhos.

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“Estamos a trabalhar cheios de nervos porque não temos gente e estamos cansadas, cansadas de lutar para nada”. As palavras são de Celeste Gomes, que é funcionária numa escola em Espinho e veio esta sexta-feira até Lisboa para participar na manifestação nacional da função pública. “Trabalho numa escola com quase 1700 alunos e só temos 21 funcionários ao serviço”, diz, explicando que o trabalho dos auxiliares passa também por ajudar as crianças e completar o que fazem os pais e professores. “Dizem que somos ‘assistentes operacionais’, só que não nos soa muito bem porque somos muito mais do que isso”.

Celeste Gomes foi uma das centenas de trabalhadores da administração pública que marcharam nesta sexta-feira pelas ruas da capital, pedindo melhores condições de trabalho, melhores salários e menor precariedade. Desde professores a enfermeiros, administrações locais, funcionários judiciais e de notariado, trabalhadores das Forças Armadas e de unidades de saúde, todas as vozes se uniam nas palavras de ordem: “A luta continua, no serviço e na rua”; “basta de congelamento, queremos o nosso aumento”; “tempo trabalhado não pode ser roubado”.

Não foi só dia de manifestação, mas também de votação (e de chumbo) do polémico diploma sobre o tempo de carreira dos professores: “Foi uma coincidência das boas. Estamos aqui para manifestar e com mais razão ainda”, acredita a educadora de infância e dirigente sindicalista Ana Paula Pires, que esteve de manhã no Parlamento e à tarde na manifestação. O pré-aviso já tinha sido emitido a 15 de Abril pela Federação Nacional de Sindicatos dos Trabalhadores em Funções Públicas e Sociais (FNSFPS).

No início da manifestação, Ana Paula levava um número “2” gigante de esferovite na mão, e era uma das que encabeçavam os professores em marcha, com as letras e algarismos “9A4M2D” em riste — referentes aos nove anos, quatro meses e dois dias em que as progressões nas suas carreiras ficaram congeladas. A dirigente sindical da FENPROF veio de Coimbra para pedir não só a reposição do tempo de carreira, mas também mudanças “a nível dos horários, das reduções das turmas, do rejuvenescimento da carreira”. “Isto assim não se aguenta”, protesta.

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Um chumbo, “uma traição”

A manifestação começou às 15h na rotunda do Marquês de Pombal, bloqueando uma das principais artérias da capital, e seguiu pelos altos e baixos da cidade. “Vá lá, camaradas, agora é a descer”, incentivava um dos manifestantes ao megafone, quase a chegar à Basílica da Estrela.

O destino final foi a residência do primeiro-ministro, em São Bento. Pelo caminho, havia transeuntes curiosos e era visível (e audível nas buzinas) o desagrado dos condutores que esperavam nos carros, diante das estradas cortadas, alguns fazendo inversão de marcha. Nas paragens, acumulavam-se pessoas que esperavam por autocarros que não chegavam. Ao lado de uma dessas paragens, as crianças de um infantário na zona de Campo de Ourique faziam ondular no ar as bandeiras sindicais que lhes tinham sido oferecidas.

Uma das razões que motivava a indignação colectiva era o chumbo (pelo PS, PSD e CDS) do texto final da recuperação integral do tempo de carreira congelado dos professores. O primeiro-ministro, António Costa, agradeceu a “vitória da responsabilidade”, mas para Ana Paula Pires não foi isso: “Já sabíamos qual era a posição do PS, mas o PSD e o CDS roeram a corda. Foi uma quebra de confiança e, de certa forma, uma traição”, confessa. Quanto à ameaça de demissão do primeiro-ministro, alegando que a aprovação teria um forte impacto orçamental, Ana Paula Pires diz que foi mera chantagem. “E tem também a questão eleitoral e a verdade é que o Governo virou a opinião pública contra os professores”.  

O desagrado quanto ao chumbo foi logo perceptível através dos professores que estavam nas galerias do Parlamento, que abandonaram em silêncio assim que ficou clara a decisão. Ana Paula Pires foi uma das que se levantaram. “Fizemos só um bocadinho de barulho com os pés para eles darem conta de que estávamos a sair”, brinca.

Mas a situação, ouve-se, é séria: “Isto é nitidamente um roubo”, assevera o professor João Bugalho, que marcha a passo lento pela rua Alexandre Herculano com outros professores, todos eles na retaguarda da manifestação. “Durante nove anos desloquei-me à escola, cumpri o tempo e trabalhei todos os dias. Agora tiram-nos o tempo para o resto da nossa vida. Então e as nossas famílias?”, questiona o professor de Educação Visual numa escola de Torres Vedras, profissão que assume há 31 anos, dos seus 52 de vida.

“Durante nove anos andámos a contribuir para o equilíbrio das finanças públicas porque isto estava mal. Para onde vão agora estes 800 milhões que vão poupar connosco?”, indaga, dizendo que toda a situação do chumbo no Parlamento foi “vergonhosa”. "Se António Costa teve a ousadia e a lata de ameaçar demitir-se, acho que agora as direcções das escolas e de alguns hospitais deviam ameaçar demitir-se em bloco. Deixavam o país numa situação caótica, as escolas numa situação caótica. Era isso que deviam fazer”, considera. 

“Não estamos a pedir o céu”

Os enfermeiros também marcaram presença no protesto: “Não estamos a pedir o céu. Pode haver determinadas franjas de enfermeiros que podem querer o céu, mas a maior parte quer aquilo que é justo, que são justas reivindicações”, defende Pedro Frias, que trabalha em Lisboa e pertence ao Sindicato de Enfermeiros Portugueses (SEP). “Há motivos gerais e transversais a toda a administração pública para estar aqui hoje, como o descongelamento das carreiras (que devem ser valorizadas), a contagem de todo o tempo de serviço a quem não foi feito”. E os salários, claro. “Temos direito a uma carreira digna”, e isso implica que sejam contratadas mais pessoas para unidades de saúde, que estão saturadas e “a viver situações de verdadeiro caos”.

Enquanto um grupo de manifestantes gritava que “o público é de todos, o privado só de alguns”, Pedro Frias pedia cautela: “Não podemos comparar aquilo que não é comparável. Há situações no privado em que os trabalhadores têm melhores remunerações, mas também há situações no privado em que os trabalhadores são altamente explorados”. Mas reconhece que, no caso dos enfermeiros, tem havido uma saída de trabalhadores da função pública para o sector privado, “um roubo por parte do privado a enfermeiros muito competentes precisamente porque lhes pagam e lhes reconhecem as suas capacidades e mais-valias”. 

À valorização, juntavam-se outros pedidos: aumentos salariais e de pensões de 4%, a subida da remuneração mínima no Estado para 650 euros e a recuperação integral do tempo de serviço que esteve congelado.  

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Luís Magalhães, um dos manifestantes DANIEL ROCHA

“A crise acabou, mas para nós não”

Com camisolas e faixas a dizer “justiça para quem trabalha nela”, o casal de funcionários judiciais da Moita, Cátia Dias (31 anos) e Márcio Pereira (33) marcham pelo Rato. Também se queixam do tempo congelado: “É um tempo que não nos querem dar e que nos permitiria aumentar um bocadinho mais o nosso salário”, reage Cátia Dias, que sente que a negação desse “direito” tem condicionado a sua vida e prospecções futuras. “Estamos a falar de talvez menos 300 ou 400 euros por mês, líquidos talvez 200. Ao fim do ano, faz a diferença. Fora a parte em que estivemos sem subsídios, sem nada”, completa Márcio, explicando que trabalham desde 2010 e que nunca subiram de escalão. “Devíamos estar no terceiro e ainda estamos no primeiro. Dizem que a crise acabou, mas para nós não.”  

De Viana do Castelo a Lisboa, Luís Magalhães fez quase 400 quilómetros em cinco horas de autocarro para poder estar presente na manifestação. Trabalha na área da cultura na administração local do distrito e diz que “é urgente fazer-se negociações nas carreiras” e que “a falta de motivação para se trabalhar é gritante”. “Todos estes anos sem progressão têm uma repercussão no meu futuro, na minha reforma. Isto penaliza-nos muito, sobretudo aos mais novos”. De resto, diz estar “em parte” solidário com o cenário dos professores. “Concordo que haja um equilíbrio, mas não se pode dar tudo a uns e nada a outros”. 

Abílio Barroso é técnico na Polícia Judiciária e pede que haja “dignificação do trabalho na função pública” e espera que seja dada resposta “aos anseios a estas forças consideradas minoritárias”. “Pedimos melhores condições salariais, melhores condições de trabalho, a entrada de mais pessoal porque temos muita escassez e, sobretudo, o descongelamento das carreiras porque estamos congelados há dez anos”.

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