Democratas querem apagar barras negras do relatório Mueller, mas a Casa Branca não cede a borracha

Maioria do Partido Democrata na Câmara dos Representantes acusa o procurador-geral de desobediência por se recusar a entregar uma versão do relatório sem partes censuradas. Presidente Trump responde com uma medida rara e exerce a sua autoridade especial para travar uma ordem do Congresso.

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O procurador-geral, William Barr, está no centro de uma possível crise constitucional nos EUA LUSA/SHAWN THEW

O braço-de-ferro entre o Partido Democrata norte-americano e o Presidente Donald Trump sobre as suspeitas de conspiração com a Rússia está a transformar-se numa crise constitucional, num processo que deverá sair do Congresso para os tribunais e que poderá arrastar-se por meses ou anos.

É para aí que apontam as mais recentes decisões dos dois lados, anunciadas na noite de quarta-feira: os democratas abriram um processo de desobediência contra o procurador-geral, nomeado por Trump, por se recusar a entregar ao Congresso uma versão não censurada do relatório da investigação sobre a Rússia; e o Presidente norte-americano exerceu a sua prerrogativa (executive privilege) de proibir a divulgação desse documento, num caso que faz lembrar uma decisão semelhante do Presidente Richard Nixon no auge do escândalo do Watergate.

A acusação contra o responsável máximo do Departamento de Justiça, William Barr, foi aprovada na quarta-feira pela Comissão de Assuntos Judiciais da Câmara dos Representantes, com os votos a favor da maioria do Partido Democrata e os votos contra dos congressistas do Partido Republicano.

Para ser concretizada, essa acusação tem de ser aprovada pelo plenário da câmara baixa do Congresso norte-americano, o que poderá acontecer no início da próxima semana, também com uma votação em linha com a divisão das forças: 235 do Partido Democrata contra 197 do Partido Republicano (três lugares estão por preencher, dependentes de eleições extraordinárias).

Resumo polémico

Em causa estão os esforços dos congressistas do Partido Democrata para terem acesso ao relatório do procurador especial Robert Mueller, que investigou durante dois anos as suspeitas de conspiração entre a campanha eleitoral de Donald Trump e a Rússia, e a suspeita de que, já na Casa Branca, o Presidente Trump tentou sabotar essa investigação.

A 22 Março, o procurador-geral divulgou um sumário das conclusões de Mueller e depois enviou ao Congresso o relatório na íntegra, mas com várias passagens censuradas – o Departamento de Justiça diz que a lei proíbe a divulgação de algumas informações, como as que foram recolhidas através de um grande júri ou as que possam pôr em causa processos em curso nos tribunais.

Mas essas duas acções de William Barr foram postas em causa pelo Partido Democrata e pelo próprio procurador especial Robert Mueller. Numa carta divulgada na semana passada, com a data de 27 de Março, Mueller disse a Barr que o resumo de quatro páginas feito pelo responsável do Departamento de Justiça “não captou totalmente o contexto, a natureza e a substância” das suas conclusões; e o Partido Democrata pressionou o procurador-geral a trabalhar em conjunto com o Congresso para que os tribunais autorizem a divulgação das informações mais sensíveis.

Como nenhuma das partes cedeu, o Partido Democrata tomou uma decisão rara na história das relações entre os poderes legislativo e executivo norte-americanos, e abriu um processo contra o procurador-geral por desobediência ao Congresso – se esse processo for aprovado, será apenas a segunda declaração de desobediência de um procurador-geral, depois do caso de Eric Holder, em 2012.

Avaliar o impeachment

Antecipando essa votação, o actual procurador-geral pediu ao Presidente norte-americano que exercesse a sua autoridade para travar o envio de um relatório sem partes censuradas ao Congresso. E foi isso que o Presidente Trump fez também na quarta-feira, horas antes da votação na Comissão de Assuntos Judiciais.

O Partido Democrata acusa a Casa Branca de obstruir o trabalho do Congresso, e diz que através do relatório e da montanha de provas recolhidas ao longo de dois anos de investigação poderá avaliar com mais certezas se se justifica a abertura de um processo de destituição do Presidente.

Apesar de Robert Mueller ter dito que não encontrou provas de conspiração entre a Rússia e Donald Trump, não tomou uma decisão sobre a suspeita de obstrução da Justiça. Ao dizer que os indícios encontrados (como a demissão do director do FBI, James Comey, e as pressões para demitir outros responsáveis) não exoneram o Presidente mas também não dão garantias de que o Departamento de Justiça quisesse acusá-lo, o procurador especial deixou a porta aberta ao Congresso para fazer a sua própria interpretação e decidir os próximos passos.

Do outro lado, o Partido Republicano acusa os democratas de quererem aproveitar-se politicamente de um relatório que iliba o Presidente de conspirar com a Rússia.

Os republicanos lembram que esperaram vários meses para declararem a desobediência do procurador-geral Eric Holder, em 2012, e que só o fizeram porque o responsável nomeado por Barack Obama não quis entregar nenhum documento sobre a operação Fast and Furious – uma operação de venda de armas nos EUA a traficantes mexicanos com o objectivo de os localizar no México, que provocou um escândalo quando se soube que a agência responsável não tinha colocado os localizadores nas armas nem tinha alertado as autoridades mexicanas para deter os traficantes.

No caso de Eric Holder, a Administração Obama também exerceu o executive privilege para proibir o envio dos documentos, mas um tribunal acabou por forçar a Casa Branca a cumprir a ordem do Congresso, o que aconteceu em Abril de 2016.

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