IPO averigua atrasos no tratamento de doentes com cancro e recusa “motivos financeiros”

A burocracia financeira em torno de exames oncológicos foi apontada como estando na origem dos atrasos que impediram que pacientes com cancro recebessem tratamento a tempo. IPO nega e diz que motivo financeiro “não tem qualquer fundamento”.

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Instituto Português de Oncologia (IPO) de Lisboa Fabio Augusto/ARQUIVO

O Instituto Português de Oncologia (IPO) de Lisboa mandou abrir um processo de averiguações para apurar o que se passou com o atraso num exame pedido pelo Hospital de Faro, que era decisivo para um doente oncológico iniciar o tratamento.

O Correio da Manhã (CM) noticiou esta quarta-feira que um doente com cancro de pulmão, de 61 anos, que estava a ser acompanhado no Hospital de Portimão, morreu no dia 27 de Março, sem fazer quimioterapia devido ao atraso de exames decisivos para definir o tratamento oncológico.

O doente teve de esperar por um exame sete vezes mais tempo do que o recomendado, adianta o jornal, afirmando que este não é um caso isolado, havendo pelo menos cincos casos no Hospital de Portimão e outros ainda por quantificar em Faro. Segundo o CM, “a falta de um termo de responsabilidade, ou seja, uma garantia de pagamento que acompanhasse a amostra, levou o Instituto Português de Oncologia (IPO) a recusar o exame enviado pelo Centro Hospitalar Universitário do Algarve no dia 23 de Janeiro”.

Contactado pela agência Lusa, o presidente do IPO de Lisboa, João Oliveira, afirmou que “a crítica de que a recusa do exame tivesse motivo financeiro não tem qualquer fundamento”.

Outros casos no Algarve

Outras denúncias semelhantes foram feitas pelo deputado social-democrata Cristóvão Norte, noticiadas pela Rádio Renascença, e que foram repetidas esta quarta-feira, em conferência de imprensa, no Parlamento.

Na sequência destes casos, o PSD anunciou que quer ouvir no Parlamento a ministra da Saúde, Marta Temido, e as administrações do IPO e do Centro Hospitalar Universitário do Algarve (CHUA) sobre casos de doentes oncológicos que terão morrido “sem tratamento” por constrangimentos financeiros.

De acordo com o deputado eleito pelo círculo de Faro, há, pelo menos, cinco casos em Portimão e “um número indeterminado” em Faro de doentes oncológicos já diagnosticados e que necessitariam de uma análise realizada no IPO para que lhes fosse aplicada a terapêutica.

“Durante quatro meses, entre Dezembro de 2018 e Março de 2019, tal não sucedeu, ou nos casos em que essas análises vieram a ser feitas, foi só depois de pedidos insistentes dos médicos e perante o desespero das famílias”, afirmou. Segundo Cristóvão Norte, “morreram pessoas sem conhecer o resultado das análises e sem terem direito a qualquer tratamento”.

Segundo o deputado, as análises não chegaram a tempo e atrasaram ou impediram o início dos tratamentos. “Segundo aquilo que foi possível apurar, o IPO rejeitou a realização atempada das análises, pois não tinha sido emitido o termo de responsabilidade”, uma garantia de pagamento dada pelo hospital, adiantou ainda Cristóvão Norte à Renascença.

A preocupação é corroborada pelo bastonário da Ordem dos Médicos, Miguel Guimarães, que, ainda assim, diz não ter recebido qualquer queixa: “Quando um doente tem uma doença oncológica e precisa de fazer um determinado tipo de estadiamento para decidir qual o melhor tratamento e isso é atrasado… é uma situação complicada”, afirma.

IPO diz que recusa não foi financeira e abre averiguações

“O termo de responsabilidade que deverá acompanhar um exame como este tem também uma finalidade à posteriori de se proceder à regularização financeira, mas a recusa que existiu foi com base no procedimento do serviço de anatomia patológica que usa também o termo de responsabilidade para completar os dados administrativos relacionadas com o doente”, explicou o presidente do IPO de Lisboa.

O oncologista disse perceber que “as pessoas se interroguem, porque os termos de responsabilidade estão associados à parte financeira”, mas estes também são “uma peça essencial na fase pré-analítica dos exames como está estabelecido nos manuais das boas-práticas nacionais”.

João Oliveira recordou que foi enviada pelo Hospital de Faro uma amostra de uma biópsia para ser examinada no instituto, “como é normal”, mas que não estava de acordo com as normas de qualidade do serviço de anatomia patológica.

Como “não vinha com as peças de identificação e as peças administrativas, além das peças clínicas necessárias, foi devolvido, o que está de acordo com o manual de qualidade e que é um procedimento normal que tem em vista a segurança e a correcta identificação da pessoa a quem pertence aquela peça e que tem o seu fundamento em princípios de fiabilidade e segurança dos exames e de correcção do relatório que vai ser dado”, explicou, afirmando que se trata de um procedimento normal.

“A colaboração com o Hospital de Faro é muito grande, como com outros hospitais do Serviço Nacional de Saúde que enviam muitos exames para serem realizados no IPO, e normalmente as coisas passam-se sem dificuldades”, sublinhou.

Já este ano, o Hospital de Faro fez mais de uma dezena de pedidos de exames iguais ao referenciado em que “vieram termos de responsabilidade e os exames foram feitos de acordo com os prazos”.

“Neste caso, houve uma irregularidade administrativa que não era compatível com a segurança dos exames no serviço de anatomia patológica e que foi resolvido como está previsto que se resolva”, sustentou.

Mas – salientou – “perante as notícias que hoje surgiram e que reafirmo não têm qualquer motivação financeira por parte do IPO, o hospital decidiu fazer um processo de averiguações para apurar os pormenores do que possa ter acontecido neste caso para confirmar as questões que são alegadas”.

“Não temos dúvidas sobre o nosso procedimento habitual, mas perante as suspeições levantadas pela imprensa temos a obrigação, como é costume, de fazer um processo de averiguações interno, que dará os seus resultados”, rematou.

Uma “cruel desumanização”

Cristóvão Norte diz ter “provas concludentes destes factos” e diz que apresentará o caso à Procuradoria-Geral da República “para que avalie em que medida deve ou não proceder à abertura de um inquérito para apurar responsabilidades”. E considera que tal representa “uma flagrante violação dos direitos” dos cidadãos e “uma cruel desumanização” do Serviço Nacional de Saúde.

“Não excluímos neste momento que esta circunstância tenha tido lugar exclusivamente no Algarve, mas não excluímos que possa haver um número muito maior de casos”, alertou, apontando que as explicações que obteve do CHUA se prendem com constrangimentos financeiros que o impediram de emitir a nota de encomenda que estabelece a garantia de pagamento da análise, o que levou o IPO a rejeitar os pedidos.

“Se houver mais instituições que se encontram em situação financeira limite — e sabemos que no caso da saúde a desorçamentação com este Governo tem sido um facto incontroverso — o que pode estar em causa não é exclusivamente o Algarve”, acrescentou.

O deputado, que esteve acompanhado na conferência de imprensa pelo coordenador da bancada para os Assuntos de Saúde, Ricardo Baptista Leite, disse ainda que, em audição parlamentar em 27 de Março, Marta Temido reconheceu a existência de um caso e o secretário de Estado da Saúde de dois. “A informação é absolutamente fidedigna e impõe-se que o Governo assuma responsabilidades”, defendeu. 

Nesta quarta-feira, a ministra Marta Temido diz que pediu esclarecimentos sobre o caso. “Neste momento vou contactar os dois hospitais para perceber em concreto o enquadramento do caso”, disse à Renascença.

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