Recoser o pano

De uma maneira ou de outra, algo vai começar a 26 de Maio. Em boa verdade já começou.

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Assim como houve quem afirmasse o fim da História com a queda do muro de Berlim, há quem entenda que isso de esquerda/direita em política é coisa do passado que nos tempos de hoje se adequa mal à realidade ou que, pelo menos, precisaria de ser superada por uma outra atitude baseada talvez num pragmatismo de bom senso entre mulheres e homens de boa vontade.

Nos últimos anos assistimos mesmo, nomeadamente a nível europeu, a uma tentativa de demonstrar que não há dois ou três caminhos possíveis mas uma única estrada a percorrer para chegar ao Shangri-La e que quem pretender o contrário ou é um ignorante ou um perigoso populista que nos levaria, ao som da sua flauta mágica, à desordem e ao caos.

Neste 1.° de Maio de 2019 completaram-se 15 anos do chamado alargamento big-bang da União Europeia que integrou dez novos países: Chipre, Estónia, Eslováquia, Eslovénia, Hungria, Letónia, Lituânia, Malta, Polónia e República Checa. Três anos depois entrariam a Bulgária e a Roménia.

A passo de corrida, estes novos Estados-membros tiveram de aplicar ou transpor para a sua ordem jurídica cerca de 20.000 actos legislativos da UE (100.000 páginas do Jornal Oficial da UE). Aliás, durante as negociações de adesão foram pressionados, em nome do modelo de mercados liberais, a privatizarem empresas e serviços apesar do direito comunitário não o impor. Com a agravante de constatarem que certas políticas da União, sobretudo as que mais lhes interessavam, ou estariam sujeitas a longos períodos de transição ou não lhes seriam aplicáveis como já o eram aos Estados-membros mais antigos (por exemplo, na política agrícola comum). Até no recrutamento de funcionários dos novos países, a UE criou uma desigualdade de estatuto diminuindo os direitos dos recém-chegados em comparação com os já instalados. Convenhamos que para quem se libertara da canga soviética e da ‘soberania limitada’, o confronto com esta nova partilha de poderes haveria necessariamente de provocar, cedo ou tarde, um forte arrefecimento dos entusiasmos iniciais.

Entretanto, nos outros Estados-membros foram surgindo reservas e desconfianças face ao modus operandi das instituições europeias e à constatação de que a tal estrada única é afinal um túnel em que a luz tarda a aparecer e onde só alguns dispõem de lampião, aliás sempre os mesmos. O facto, por exemplo, de se apontar como provável próximo presidente da Comissão Europeia o alemão Manfred Weber do PPE, como secretário-geral da Comissão o alemão Martin Seylmar, como provável próximo presidente do Banco Central Europeu o alemão Jens Weidmann (actual presidente do Bundesbank) e como principal candidato a próximo presidente do Conselho Europeu o francês Michel Barnier, mais não faz que acentuar a impressão de que os dados estão previamente viciados e que as mãos no peito dos que falam muito em europeísmo visam afinal os seus próprios interesses de acordo com um plano que não explicitam.

Tudo isto se passa numa fase histórica de grandes mudanças a nível global, com o ressurgimento de blocos de uns em oposição a outros e o aparecimento de novos actores na cena mundial. Nos próximos dez anos, das cinco maiores potências económicas mundiais, pelo menos três serão asiáticas e não é certo que a UE seja uma das restantes. É por isso que a própria Alemanha se questiona hoje sobre se as suas prioridades são europeias ou se lhe vale mais ir olhando para outros horizontes. Também é por isso que começa a surgir nos próprios discursos dos principais actores da máquina institucional da UE um tom defensivo, para não dizer assustado, reforçando o policiamento das suas fronteiras, invocando a urgência de um exército europeu, promovendo campeões industriais europeus e derrapando, aos empurrões, para um proteccionismo comercial. Contudo, as próprias empresas europeias, confrontadas pela extraterritorialidade de certas medidas sancionatórias americanas, vêm-se encurraladas num jogo que não desejam mas a que se submetem e, mais grave ainda, vêm-lhes ser retirado o acesso aos sistemas jurisdicionais nacionais ou da UE através de acordos comerciais com países terceiros que estabelecem tribunais arbitrais específicos para dirimir eventuais litígios (voltaremos a este assunto comentando o recente Parecer 1/17 do TJUE de 30/4/2019).

Se a este cocktail de incertezas e de desilusões, seja por um sentimento de falta de democraticidade do funcionamento da UE, de aumento das desigualdades no próprio espaço europeu, de conivência com terceiros Estados violadores dos mais elementares direitos humanos, da percepção de que nenhum responsável encara verdadeiras mudanças nem questiona os erros cometidos, juntarmos as informações alarmantes de que caminhamos para um desastre ambiental, sem que haja reacção séria dos governos, e que é muito provável uma nova crise financeira grave, então explica-se que a nível nacional reapareçam os mesmos tiques de fechamento e de desconfiança, tal como exprimidos por novas organizações de cariz xenófobo que recuperam um público desorientado e frustrado. Isto é, uma direita extrema, que desgraçadamente alguns apenas chamam de radical senão mesmo de direita-ultra.

Parece-me, aliás, sintomático que a direita espanhola tenha pactado com o Vox para se alcandorar ao governo autonómico da Andaluzia e lhe tenha proposto inclusivamente uma coligação eleitoral nas legislativas de 28 de Abril, sendo que alguns já admitem a integração dos futuros eurodeputados Vox no próprio PPE. Essa rendição de uma direita à sua direita, não só pelo discurso e pela agenda mas mesmo organizativamente, é uma desgraça sem nome e de funestas consequências. Há 17 países da UE com partidos da extrema-direita no respectivo parlamento nacional e, em vários deles, no próprio governo.

Por outras palavras, é falso que a dicotomia esquerda/direita tenha sido superada por uma qualquer harmonia geral ou discurso único, assim como a História, com maiúscula, não se finou.

Se é certo que o eleitor europeu foi afastado do exercício democrático da tomada de decisões e do controlo do funcionamento da UE, é certo também que no dia 26 tem o poder de escolher um programa e os actores da execução desse programa. E a escolha é entre o “mais do mesmo” ou um outro caminho. Pode ser que afinal, e apesar do seu voto, nada venha a mudar no essencial, mas esse voto é uma afirmação e será um sinal. Que seja, pelo menos, o sinal de um princípio. Sim, de uma maneira ou de outra, algo vai começar a 26 de Maio. Em boa verdade já começou.

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