As eleições em que o ANC enfrenta a mais dura batalha desde o apartheid – contra si próprio

A herança da corrupção desenfreada dos anos de Zuma deixou o principal partido sul-africano dividido. As eleições desta quarta-feira devem deixar Ramaphosa na presidência. As eleições são esta quarta-feira.

O Presidente Cyril Ramaphosa
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O Presidente Cyril Ramaphosa Siphiwe Sibeko/Reuters
Comício da Aliança Democrática em Joanesburgo
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Comício da Aliança Democrática em Joanesburgo KIM LUDBROOK/EPA

Awelani, de 25 anos, vende legumes à beira de uma estrada em Chiawelo, uma zona do Soweto, o berço da luta contra o apartheid na cidade de Joanesburgo. Ao ver fotografias mais velhas do que ele, que mostram Nelson Mandela ao lado do actual Presidente sul-africano, Cyril Ramaphosa, não se mostra impressionado. “Ramaphosa está aqui desde 1994, e não fez nada”, diz, citado pelo Financial Times.

Chiawelo é o local onde Ramaphosa nasceu, há 66 anos, em pleno regime de supremacia branca. O descontentamento de Awelani é extensível a cada vez mais eleitores, até em bastiões históricos do Congresso Nacional Africano (ANC) – o antigo movimento de libertação que combateu o apartheid e que governa a África do Sul ininterruptamente desde 1994 – como o Soweto. As eleições gerais desta quarta-feira representam o desafio mais duro ao partido, que se apresenta dividido e incapaz de resgatar a confiança e o prestígio de outros tempos.

Apesar da impopularidade inédita que tem despertado, o ANC deverá voltar a ser o partido mais votado e garantir uma maioria no Parlamento, tal como tem acontecido desde a democratização – o Presidente é eleito pelo Parlamento, e não directamente. Mas a dimensão dessa expectável vitória poderá ditar o rumo da luta que Ramaphosa terá de travar nos próximos tempos. Contra o próprio partido.

A década perdida

A crise que assola o ANC está intimamente ligada à governação do anterior Presidente, Jacob Zuma, marcada por uma corrupção tão profunda que até mereceu a criação de uma expressão própria: a “captura do Estado”. Durante anos a fio, Zuma e o seu círculo mais próximo instalaram-se na Administração Pública e nas empresas estatais, e sugaram milhões e milhões de rands - de tal forma que o partido o ameaçou com uma moção de censura, forçando-a a demitir-se, em Fevereiro de 2018. depois de Ramaphosa ter conquistado a liderança do ANC.

Num continente onde a corrupção é endémica, a África do Sul tornou-se um dos países mais corruptos, ao nível de estados muito mais pobres como o Ruanda ou a Namíbia.

Enquanto Zuma e os seus correligionários enriqueciam à custa do dinheiro público, a economia sul-africana arrefecia, o investimento abandonava o país, e o desemprego crescia. O Standard Bank calcula que nos anos de Zuma, o PIB do país desvalorizou mais de um bilião de rands (70 mil milhões de euros) e foi destruído um milhão de empregos. Hoje, a África do Sul tem uma das sociedades economicamente mais desiguais do planeta, e é terreno fértil para conflitos sociais. A revista britânica The Economist chama a este período de “década perdida”.

A posição de Zuma tornou-se insustentável e ameaçou abalar o domínio histórico do ANC sobre a política nacional. Nas eleições municipais de 2016, o partido perdeu grandes cidades como Pretória e Porth Elizabeth e o risco de vir a perder a maioria a nível nacional parecia real. É então que surge Ramaphosa, na altura vice-presidente, para disputar a liderança do ANC, embora sem o apoio de Zuma. As eleições internas foram batalhadas ao milímetro e puseram a nu as divisões no partido. Ramapohsa não escondeu que tanto o ANC como a África do Sul precisavam de virar a página, e propôs uma ruptura com o passado recente.

Em pouco mais de um ano, o antigo sindicalista emprestou alguma elevação moral ao partido e parece ter impedido um descalabro eleitoral. Um dos exemplos foi a constituição de uma comissão de inquérito para apurar as suspeitas de corrupção durante a Administração anterior. Mas as pulsões dos tempos de Zuma subsistem no seio do ANC.

Dois partidos

Apesar de Ramaphosa ter ascendido à liderança, grande parte das estruturas do partido mantêm-se nas mãos de dirigentes muito próximos do ex-Presidente, o que ficou patente na elaboração das listas parlamentares. A convicção dos analistas é de que uma vitória curta nesta quarta-feira pode impedir Ramaphosa de se impor no partido. “O ANC está a ser gerido quase como se fossem dois partidos, é uma coisa inédita”, diz ao FT o presidente da fundação Democracy Works, William Gumede.

No jornal sul-africano The Star o analista Ebrahim Harvey sublinha que, mais do que as eleições, serão os próximos dois anos a determinar se o ANC vai “sobreviver intacto à pior crise da sua existência”. “É precisamente por a oposição vir a ganhar terreno em relação a um acossado ANC – mas não o suficiente para o afastar do poder – que o período pós-eleitoral pode ser um teste tão ou mais duro para o ANC do que as eleições”, acrescenta.

O poderoso posto de secretário-geral é ocupado por Ace Magashule, um aliado de longa data de Zuma fortemente implicado em casos de corrupção. Um livro recente chamado Gangster State descreve o dirigente como o “senhor dez por cento”, referindo-se à quota que ia recebendo em forma de suborno ao longo dos anos. A apresentação do livro foi interrompida por militantes do ANC, que acabaram por queimar vários exemplares.

O reconhecimento de que estes são tempos de excepção é admitido até no interior do partido. “Pela primeira vez, um líder do ANC precisa de apoio numa escala mais alargada do que o eleitorado do partido, para que possa lidar com aqueles que criaram os problemas no nosso próprio partido”, disse ao The Guardian o director de campanha do ANC no Cabo Ocidental, Ebrahim Rasool.

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