União Europeia, a mutualização furtiva dos grandes riscos

Precisamos urgentemente de exigir a aprovação pelas instituições europeias de bens comuns europeus, de mecanismos de urgência e regulação, de cooperações reforçadas e estruturadas, de autoridades e fundos mutualizados. É o dever da sociedade civil europeia e o nosso como cidadãos europeus responsáveis.

Há uma razão de força maior para ir votar nas próximas eleições europeias, chama-se “mutualização dos grandes riscos”. É certo, sempre que se fala em mutualização, sobretudo das dívidas soberanas, os países mais abastados da União Europeia adiam a discussão do problema, com receio que “sobre” para eles. Mas no caso dos” grandes riscos” parece haver outra predisposição e maior abertura para abordar o assunto. Com efeito, perante a ameaça do risco iminente, a partilha desse risco coloca-nos no cerne do projeto europeu, no coração de uma união cada vez mais estreita entre os povos da Europa. No caso específico de Portugal, a mutualização dos grandes riscos é a razão de ser, mesma, do projeto europeu. Senão, vejamos.

No concerto das nações somos um Estado-exíguo muito vulnerável às contingências externas, tanto mais quanto somos uma pequena economia aberta e price-taker no comércio internacional. Por outro lado, na aldeia global em que já vivemos, somos todos vizinhos do condomínio-terra onde o risco sistémico, interdependente e aleatório é uma ameaça permanente. Vivemos, digamos, em “estado de risco iminente”, razão pela qual “a mutualização dos grandes riscos” por parte da União Europeia é, só por si, uma razão bastante para fazermos fé no grande projeto de construção europeia.

Lembremos, então, os fatores globais, as variáveis exógenas, que pesam, cada vez mais, sobre a nossa condição humana: os efeitos globais dos fluxos de comércio, investimento e finanças, os impactos cada vez mais frequentes e intensos das alterações climáticas, os efeitos transversais e as incertezas da revolução digital, a influência das redes sociais sobre o nosso comportamento quotidiano, as alterações sociodemográficas, as grandes vagas migratórias e o modo como ocupam o território, as ameaças da criminalidade organizada e as consequências nefastas da guerra informática e cibernética.

Neste contexto, de convergência dos fatores de risco global, justifica-se que façamos uma breve reflexão sobre o âmbito e alcance do que poderia ser designado como uma teoria dos “bens comuns e mutualização de grandes riscos”, percebida e interpretada aqui como uma geometria variável de “cooperações reforçadas e estruturadas” previstas nos tratados europeus e com uma cobertura financeira muito diversificada e ajustada a cada cooperação em concreto.

  1. Na aldeia global, os nossos vizinhos irão cometer risco moral (moral hazard) e comportar-se como passageiros clandestinos (free rider)

Por este facto, facilmente observável, as quatro liberdades do mercado único europeu e a prática de uma cidadania europeia responsável irão exigir um outro “espaço de liberdade, segurança e justiça”, muito provavelmente com mais segurança interna europeia, sob a forma de uma cooperação estruturada e permanente encimada, talvez, por uma procuradoria europeia; estamos, assim, de algum modo, a sugerir a mutualização da segurança interna europeia através de uma abordagem mais estruturada e permanente do espaço de liberdade, segurança e justiça já hoje existente na União Europeia;

  1. Os grandes eventos ou ocorrências em matéria de alterações climáticas têm um custo incomportável para um pequeno país como Portugal

São cada vez mais frequentes e intensos os efeitos nefastos dos acidentes climatéricos que registam grandes custos humanos e materiais incomportáveis para os países mais pequenos; só uma cooperação europeia estruturada de prevenção e proteção civil pode antecipar, monitorizar e mitigar estas grandes ocorrências, não apenas por via de um mecanismo de urgência europeu de proteção civil, mas, também, de um mecanismo de solidariedade europeia que acompanhe e sustente os esforços nacionais de recuperação dos territórios atingidos;

  1. A prevenção e o combate contra a grande criminalidade organizada têm um custo incomportável para um pequeno país

A sofisticação das formas de criminalidade organizada e a extra-territorialidade em que que assentam, em múltiplas formas de evasão e fraude fiscal e financeira, exige uma cooperação reforçada e estruturada no campo da cooperação administrativa, mas, também, na cooperação policial e judicial; as disfunções e os efeitos colaterais negativos são potenciados pelo mercado único digital e, em especial, por fiscalidades nacionais muito diversas que alimentam uma concorrência desleal; embora saibamos que, sem uma maior convergência económica e social na União, será difícil defender uma maior harmonização fiscal, é desejável uma maior cooperação estruturada e permanente entre autoridades aduaneiras e fiscais e respetivas autoridades nacionais de regulação;

  1. O controlo e a gestão das grandes vagas migratórias têm um custo incomportável para um pequeno país

Nos últimos anos basta observar o que se passa nas fronteiras da União Europeia para perceber que o controlo e a gestão dos fluxos migratórios é um problema que está muito longe de estar resolvido; todos os dias cresce o número de migrantes ilegais por motivos económicos, os asilados políticos e os refugiados de guerra e da fome, mas, cresce, também, o número de Estados-falhados na margem sul do mediterrâneo e em todo o médio oriente; uma das linhas de fratura da política europeia passa pelas dotações afetas à política de desenvolvimento e, nesse sentido, só uma cooperação reforçada e estruturada da União Europeia com suporte na “mutualização de obrigações europeias” pode levar a bom termo uma operação de alto risco, mas absolutamente imprescindível para preservar a coesão interna da própria União;

  1. O controlo e a gestão dos fatores de segurança coletiva têm um custo incomportável para um pequeno país

De igual modo, estamos na iminência de assistir a uma proliferação de guerras locais e regionais (elas já ocorrem neste momento) em toda a orla fronteiriça da União que podem mudar substancialmente a geopolítica europeia no mediterrâneo e no Médio Oriente e pôr em causa relações bilaterais privilegiadas; esta é uma área de grande exigência em termos de cooperação estruturada e permanente pois envolve a reunião de forças nacionais, forças da NATO e forças europeias; de resto, aguarda-se para breve um reforço dos meios da política de defesa e segurança europeia e a aprovação recente de um fundo europeu de defesa vai já nesse sentido;

  1. O combate contra os grandes choques assimétricos tem um custo incomportável para um pequeno país

Os diversos mecanismos e procedimentos de estabilidade orçamental na zona euro não podem ser exigidos apenas aos países com défices excessivos; também aqui deve existir reciprocidade, isto é, os países com excedentes macroeconómicos prolongados, sejam orçamentais ou externos, devem poder aumentar a sua procura interna e assim ajudar os países em dificuldades a corrigir os seus défices; se esta reciprocidade voluntária se afigura problemática, então, devemos encontrar um mecanismo de mutualização automático (apoio europeu ao subsídio de desemprego, por exemplo) e uma cooperação reforçada entre as autoridades nacionais de regulação macroeconómica tendo em vista corrigir aquela assimetria dos procedimentos;

  1. O combate contra as desigualdades regionais e territoriais tem um custo incomportável para um pequeno país

A política de coesão europeia, por mais generosa que se apresente, não tem o poder distributivo e corretivo suficiente para obrigar a uma convergência efetiva das diferentes economias nacionais e regionais, além de que deve ser consistente com as medidas de combate aos choques assimétricos; até agora, os Estados-membros têm evitado as “obrigações europeias e a mutualização da dívida europeia” para acrescer o impacto da política de coesão e têm preferido multiplicar os mecanismos e os fundos extra-orçamentais, mas essa preferência tem revelado bem os seus limites; a instabilidade da política macroeconómica de curto prazo tem prevalecido sobre a macroeconomia de médio e longo prazo e esse facto tem impedido a resolução dos problemas estruturais dos países mais vulneráveis;

  1. A proteção contra retaliações e sanções em consequência de uma guerra comercial não está ao alcance de um pequeno país

Como agora se constata, as democracias iliberais não parecem dar-se bem com o multilateralismo comercial convencional; estão em curso várias versões de guerra comercial e as sanções associadas deixam um pequeno país à mercê da geopolítica das grandes potências; a crise do multilateralismo comercial coloca um pequeno país à beira de um ataque de nervos, embora no caso de Portugal dois terços do comércio internacional sejam feitos no quadro do mercado único europeu; espera-se, por isso, um aumento do contencioso comercial e dos problemas de arbitragem e regulação internacionais que só uma entidade como a União Europeia pode resolver adequadamente;

  1. A proteção contra a volatilidade dos mercados internacionais de capitais não está ao alcance de um pequeno país

O mesmo se diga em relação à posição financeira internacional de Portugal, até há pouco tempo com um rating negativo atribuído pelas principais agências de notação financeira. O respeito das regras orçamentais impostas pela União Europeia fornece aos mercados internacionais de capitais uma perspetiva positiva do comportamento da economia portuguesa no próximo futuro e o mesmo se diga a propósito da política do BCE para a zona euro; digamos que nesta matéria as regras de condicionalidade da zona euro não se reportam apenas a uma cooperação reforçada de natureza intergovernamental, elas já nos oferecem uma dose de federalismo monetário suficiente para amortecer alguns choques assimétricos, desde logo a própria estabilidade cambial da zona euro;

  1. A proteção contra a criminalidade informática e cibernética não está ao alcance de um pequeno país

A transformação digital e a sociedade algorítmica trazem-nos desafios incomensuráveis cujas consequências não somos capazes de delimitar com precisão; a evolução recente do mercado único digital da União Europeia no que diz respeito à proteção de dados pessoais e privacidade, aos direitos de autor na internet e a proteção dos denunciantes é um sinal claro dessa evolução transfronteiriça; a estes novos direitos acrescem as questões de alta segurança que só uma cooperação estruturada e permanente entre autoridades nacionais no seio da União Europeia pode adequadamente resolver.

Nota Final

Nos dias que correm a lealdade nacional e o nacionalismo rendem politicamente mais do que o cosmopolitismo europeu de solidariedade além-fronteiras, razão pela qual os bens comuns e a mutualização dos grandes riscos não são uma prioridade da agenda política europeia no sentido de uma “união cada vez mais estreita entre os povos da Europa”. Mas este equívoco da política europeia e da sociedade civil europeia pode pagar-se muito caro e esperemos que não seja preciso uma grande catástrofe para repor a ordem das prioridades.

Tudo somado, é muito provável que nos próximos anos assistamos a uma “mutualização furtiva” levada à prática por uma proliferação de “cooperações reforçadas e estruturadas” de cariz intergovernamental e assente em múltiplos formatos proto-federais compostos de “mecanismos, autoridades e fundos” criados à margem dos tratados. Por isso, eu insisto, há uma razão para ir votar nas próximas eleições europeias, precisamos urgentemente de exigir a aprovação pelas instituições europeias de bens comuns europeus, de mecanismos de urgência e regulação, de cooperações reforçadas e estruturadas, de autoridades e fundos mutualizados. É o dever da sociedade civil europeia e o nosso como cidadãos europeus responsáveis.

O autor escreve segundo o novo Acordo Ortográfico

Sugerir correcção
Comentar