As Misericórdias e os Museus: uma semiótica do saber

Os museus das Misericórdias têm dificuldade em lidar museograficamente com o seu passado, mas também lhes custa representar o presente, as atividades diárias de ação social que dão precisamente vida às Misericórdias.

Foram conhecidos recentemente os museus candidatos ao prémio de Museu Europeu do Ano, EMYA 2019, cerimónia que terá lugar entre os dias 22 e 25 de maio na cidade de Sarajevo. Entre os 50 finalistas encontra-se um português: o Museu da Misericórdia do Porto. Não surpreende a nomeação e trata-se, sem dúvida, de um reconhecimento ao bom trabalho museográfico. Musealizar as Misericórdias portuguesas não é tarefa fácil, pois são instituições ativas há cinco séculos. Foram testemunhas de vários regimes e foram sabendo tecer o seu património de acordo com cada momento. Sabemos o quão difícil é contradizer o momento, mesmo através da análise científica do passado; a ideia que se tem do património no presente é (quase sempre) mais entranhável e imediata. O “presentismo” do património é um mal conhecido entre historiadores, alguns, como David Lowenthal, são drásticos em “separar as águas” entre história e património; o britânico, em texto publicado em 1996, defende que se, por um lado, a história “é universalmente acessível e comprovável”, por outro, o património é mais variável, é construído socialmente e não se baseia propriamente “em factos comprovados, mas numa lealdade crédula”.

Essa perspetiva “patrimonial” subjaz nos museus das Misericórdias. Maria Antónia Lopes, nas Primeiras Jornadas de Museologia das Misericórdias, afirmou que as Santas Casas “foram, pois (e são), instituições com uma ação muito lata (…) além dos edifícios e dos objetos litúrgicos, existia nas misericórdias um imenso espólio funcional. Onde estão musealizados esses artefactos?”. Por detrás desta afirmação, notamos a insistência dos historiadores das Misericórdias portuguesas que, nos últimos tempos, têm vindo a esclarecer e a enfatizar que estas, apesar de serem instituições de matriz cristã, eram autónomas em relação à tutela eclesiástica.

A maioria dos investigadores também parece estar de acordo que houve uma mudança jurídica e administrativa a partir de 1979, data do Decreto-Lei n.º 519-G2/79, de 29 de Dezembro de 1979, sobre o estatuto das Instituições Privadas de Solidariedade Social (IPSS). Todavia, e como salientou Paulo Dá Mesquita, em artigo de 2014, o antecedente fundamentador deste “novo” entendimento institucional é gerado dois anos antes com o decreto do Bispo de Viseu que, na aprovação dos estatutos da União das Misericórdias Portuguesas, lhes concede a ereção canónica. Este aspeto é relevante, pois a autonomia – até 1979 – da tutela eclesiástica certamente contribuiu para que as Misericórdias chegassem aos nossos dias sem verem os seus interesses especialmente melindrados em períodos de fulgor anticlerical, como foram o liberalismo e a 1ª República.

É importante recordar que a rainha Dona Leonor – instituidora da Misericórdia de Lisboa devido à ausência de seu irmão, Dom Manuel, por terras de Castela e Aragão em busca da entronização do seu herdeiro (Dom Miguel da Paz) como futuro rei de toda a Península – foi a patrocinadora da edição, em Portugal (1468/1477), da Vita Christi de Tomás (de) Kempis, um dos livros chave para a compreensão da devotio moderna e da expansão da vivência espiritual cristã entre os leigos: imitar Cristo nas suas ações e frugalidade, aproximar-se dos pobres e atuar. Kempis foi, provavelmente, a grande inspiração programática da Misericórdia Lisboa, mas também influenciou outros programas modernos, como o protestantismo de Lutero e o movimento jesuíta de Loyola.

As Misericórdias portuguesas são por isso singulares do ponto de vista da ação, pretendem abarcar todas as obras de misericórdia: as 7 espirituais e as 7 corporais – ambicionam atuar como Cristo, imitar as suas ações – ao contrário do que acontecia com as Misericórdias italianas e espanholas que se dedicavam apenas a uma ou a duas obras. Como diz Isabel dos Guimarães Sá, no texto fundacional da instituição, O compromisso da confraria da misericórdia, estão lá “todos os topoi da devotio moderna” mas também – na ação e no fazer – alguns dos princípios da militância das Ordens terceiras, tão ativas no contexto peninsular. São ainda únicas no sentido de apresentarem uma forma de afirmação do poder da Coroa: assim que regressou da meseta peninsular, Dom Manuel mandou fundar Misericórdias pelas principais cidades e vilas do reino, expandindo-as depois por todos os cantos do império. Como disse Charles Boxer, em 1969, as Misericórdias em conjunto com as câmaras municipais foram os dois “pilares gémeos da sociedade colonial desde o Maranhão até Macau”. Por isso, e pelas suas origens, todas as Misericórdias apresentam no seu símbolo o brasão de Portugal.

Consegue o Museu da Misericórdia do Porto retratar essa singularidade das Misericórdias nacionais? Não na totalidade mas, muito provavelmente – quando comparado com os outros museus de Misericórdias – é aquele que mais se aproxima dessa complexa narrativa multifuncional e multisecular. Começando pelas tábuas do Fons Vitae que “expressa” a estreita ligação entre Dom Manuel e as Misericórdias, destacando o papel dos benfeitores ou beneméritos – os jogos sociais são relativamente recentes na longa vidas das Santas Casas ou Casas Pias (como começam a ser também adjetivadas a partir do século XVIII) – que eram quem, de certa maneira, sustentavam estas instituições em troca dos legados pios: uma vez mais na linha da devotio moderna, na humanização de Cristo. Seguem-se-lhes alguns dos elementos fundamentais para a orgânica das Misericórdias com a musealização da Sala do Despacho e da Administração, mas falta-lhe retratar as farmácias e os hospitais (até ao 25 de Abril de 1974 praticamente todos os hospitais e farmácias pertenciam às Misericórdias locais), falta-lhe também retratar as casas da roda – onde, segundo texto publicado em 2014 por Joana Paulino infelizmente “a mortalidade grassava” – e os recolhimentos femininos.

Com tudo isto, poderíamos perguntar-nos existe ainda espaço e vontade para um museu que conte a história singular das Misericórdias portuguesas? Não é de todo uma ideia nova, chegou a ser proposta no seio da mais antiga Misericórdia do país – a de Lisboa –, em 1981, pela então conservadora do Museu de São Roque – a falecida professora Maria João Madeira Rodrigues – que teve a audácia de propor a criação de mais dois novos museus que estariam sob a alçada da Misericórdia de Lisboa: o Museu das Misericórdias e o Museu Santa Casa da Misericórdia de Lisboa. A ideia, pioneira e pertinente, não avançou; estávamos nos inícios dos anos 80 e os museus não eram (e, de certa forma, continuam a não o ser) ainda encarados como espaços de coesão social. No entanto, seria possível avançar com tais projetos, na atualidade, tendo em conta o flagelo material que a referida Casa Santa sofreu após o terramoto de 1755, no qual perdeu objetos, alfaias e todo o seu arquivo? Seria uma tarefa hercúlea, sem dúvida, porém, não podemos negar o papel que a Misericórdia “lançada” por Dona Leonor, na maior cidade do reino, teve na génese de um património de influência lusa: uma herança viva ainda presente na generalidade dos países de língua e expressão portuguesa; uma herança histórica materializada em antigos edifícios e igrejas espalhados pelos continentes americano, asiático e africano; uma herança cultural que leva a que comunidades portuguesas, por iniciativa própria, criem Misericórdias em países sem essa tradição como a França ou o Luxemburgo.

Os museus das Misericórdias têm dificuldade em lidar museograficamente com o seu passado, mas também lhes custa representar o presente, as atividades diárias de ação social que dão precisamente vida às Misericórdias. Nesse sentido, e apesar do museu da Misericórdia do Porto “aparecer” como um bom “exemplo” de museu das Misericórdias, parece-me que a distinção deveria ser partilhada com outro museu que, apesar de não ter as mesmas características, nem ter “misericórdia” no nome, pertence a uma Misericórdia: trata-se do Museu do Traje de São Brás de Alportel. De facto, a coleção e a exposição deste museu pouco têm a ver com a história da Misericórdia, mas a sua ação, a sua relação com a comunidade, através de iniciativas com os mais idosos – preservando a memória –, a integração das comunidades emigrantes – através das danças dos seus países – e trazendo os reformados residentes do norte da Europa para o museu – envolvendo-os através da fotografia com a região – inscrevem-se plenamente na ação contemporânea das Misericórdias. Deste modo, um modelo dual, capaz de juntar a narrativa do tempo longo (incluindo a evolução das suas múltiplas funções e ações) com as comunidades para quem trabalha, parece ser o mais indicado e o mais fluido para os museus das Misericórdias; como indica Maria Antónia Lopes, numa perspetiva de futuro: “os espaços expositivos das misericórdias podem ser poderosos veículos de conhecimento e de autoconhecimento, tanto ao nível das instituições como das comunidades”.

O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico

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