A minha neta é doutora

Para muitas destas famílias, trata-se da primeira pessoa que se licencia da família. Trata-se da primeira doutora de toda aquela linhagem. E isso, caros leitores, é um momento muitíssimo solene. É algo com valor intrínseco.

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Rita França/ARQUIVO

Por estes dias, decorre no Porto a Semana Académica. Estou sozinho, sentado numa esplanada apinhada na zona universitária a recuperar da noite calma de ontem. Os mais diversos sotaques borrifam-me os ouvidos. Noto que as pessoas que me rodeiam não são portuenses. Felicidades rasgadas, famílias completas e uma solenidade descomplexada moldam o ambiente. Apercebo-me, então, que hoje é o dia em que os finalistas “cartolam” pela primeira vez, o dia em que comemoram o fim da licenciatura. É o dia da cerimónia de imposição de insígnias. As famílias destes universitários, banhadas pelo sol, estão de visita aos seus pupilos. 

Eu próprio sou finalista. Contudo, em nada comemoro o fim da licenciatura. Não sei se é feitio, por achar pouco desafiante, ou se será por uma questão de influência familiar. É que, para minha grande sorte, cresci num meio privilegiado e a minha família tem acesso à educação desde sempre. Uma licenciatura é apenas vista como uma parte do caminho, uma ferramenta obrigatória que só com alguma dificuldade poderá ser considerada uma grande conquista. Atenção, não pretendo ser mal interpretado: não quero, com isto, que pensem que me estou a pavonear. Pelo contrário, estou a expor uma situação que estava errada — o elitismo no acesso à educação superior — e que, gradualmente, fruto de um avanço civilizacional, está a ser alterado.

A “neta doutora” a que me refiro no título desta crónica representa, de algum modo, todos os beneficiários deste avanço. Independentemente do dito avanço alavancado pós 1974 ou pós 1985, a verdade é que o nosso país está a educar-se (por mais crítico que seja face à actual facilidade das licenciaturas). Podem, até, todos os novos doutores não ter o conhecimento que se exigia de um estudante universitário há 50 anos. Podem, até, todos os novos doutores não passarem pelos mesmos processos de intelectualização e contacto com os saberes que apenas estavam reservados à tal elite de há uns anos. Mas já sabem algo mais do que os seus pais. Já sabem algo mais do que os seus avós. Estão melhor informados.

Não quero, de todo, parecer aqueles cosmopolitas pacóvios que julgam que tudo o que está no campo é obrigatoriamente um atraso civilizacional. Errado. Não é isso. Mas, muitas vezes, este campo, este ruralismo repleto de coisas boas que quem apenas vive nele sabe o que são está, também, repleto de pobreza e miséria. Está blindado por falta de informação, por completa ignorância, por obscurantismo. E qualquer situação que possa combater esse obscurantismo é positiva. É disto que se trata. O acesso ao conhecimento é a luz para combater o dito cujo. E esta luz está mais disseminada, claro está, em meios mais desenvolvidos.

No caminho da esplanada para casa, passo consecutivamente pelas tais famílias que entopem os passeios às portas das faculdades. Talvez se trate de um delírio embebido na conjuntura académica da semana, mas confesso que me comove profundamente passear na rua e ver as famílias enormes — pai, mãe, avô, avó, gato, cão e periquito —, em volta de apenas uma rapariga munida de cartola e bengala, completamente consolada pela honra com que os brinda. É que, para muitas destas famílias, trata-se da primeira pessoa que se licencia da família. Trata-se da primeira doutora de toda aquela linhagem. E isso, caros leitores, é um momento muitíssimo solene. É algo com valor intrínseco. É o posicionamento de uma alavanca de prestígio em séculos de mera subsistência. É o início de uma era com mais luz.

Quebremos os tabus: muitas vezes, trata-se de gente humilde, do campo, da terra, das fábricas, que vê, finalmente, ao fim de 80 anos, um reconhecimento do esforço que fez para dar de comer aos seus filhos. Sabe que parte do seu trabalho está ali, perfilado numa neta trajada de cartola na cabeça. Há um orgulho desmedido, o que é humanamente delicioso de se ver. É transversal a qualquer cor política. É transversal a todo o país. É simplesmente bonito. Penso que estejamos a avançar.

Eça de Queiroz estaria feliz por assistir ao que assisti hoje.

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