Em Moçambique, ser gay já não é crime — mas nem todos os querem como vizinhos

“De acordo com a lei, podes ser gay, mas se saíres do armário serás ostracizado e ficarás sem emprego.” Quem o afirma é Daniel Jack Lyons que, ao longo de sete anos, fotografou pessoas LGBT em Moçambique para o projecto Hotel Luso.

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©Daniel Jack Lyons

Em Moçambique, a homossexualidade já não é crime desde Julho de 2015, porém continua a existir discriminação. Quem o afirma é o fotógrafo Daniel Jack Lyons, que desenvolveu, ao longo de sete anos, o projecto Hotel Luso, que se centra na integração das pessoas LGBT (lésbicas, gays, bissexuais e transgénero) no país.

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©Daniel Jack Lyons

O norte-americano reside em Moçambique, de forma interrupta, desde 2005 e acredita que a alteração da lei não surtiu efeito ao nível da cultura e mentalidade locais. Como escreve na apresentação do projecto, as leis anti-discriminação ajudam a “normalizar temas tabu”, mas “estarão sempre limitadas pelo léxico e conceitos presentes na cultura vigente, que ditam o que é ou não uma experiência aceitável.” Hoje em dia, diz, a integração de indivíduos LGBT já entrou na discussão pública, mas a mensagem ainda não chegou ao tecido doméstico e familiar moçambicano, que “permanece estático”.

“A discriminação, como a testemunhei, acontece mais frequentemente em cenários de intimidade do que em público”, explica o fotógrafo ao P3, em entrevista via e-mail. E exemplifica: “Muitos dos meus amigos foram ostracizados por membros da sua família [ao assumirem a sua homossexualidade]. Alguns mantêm vidas duplas, sobretudo aqueles que são ‘trans'. Tenho dois amigos transexuais que mantêm identidade masculina quando estão junto de familiares e que existem enquanto mulheres unicamente na companhia de amantes e amigos — o que pode ser incrivelmente stressante.” Daniel conhece pessoas que perderam os empregos quando os colegas de trabalho descobriram a sua orientação sexual através das redes sociais. “Este tipo de experiências convida ao secretismo”, reflecte. “De acordo com a lei, podes ser gay, mas se saíres do armário serás ostracizado e ficarás sem emprego.”

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©Daniel Jack Lyons

44% não gostariam de ter um vizinho gay

Os protagonistas de Hotel Luso foram fotografados nos quartos de um hotel homónimo, em Maputo. “É um velho hotel português, art déco, que hoje arrenda quartos à hora”, descreve o fotógrafo. “Eu não escolhi o nome, foi o nome que me escolheu a mim”, graceja. Daniel não estabelece uma associação directa entre o tema do projecto e o legado lusitano em Moçambique. “As perspectivas conservadoras sobre a sexualidade e a homossexualidade têm origem no legado judaico-cristão e nos valores católicos que foram trazidos pelos portugueses, mas não só. Antes da passagem dos portugueses por Moçambique, a região Norte do país tinha laços muito fortes com o mundo árabe. Não creio, por isso, que a homofobia tenha origem na herança portuguesa — ou que seja possível sequer apontar uma só fonte.” Mais de metade da população moçambicana assume-se como católica, mas 17% é muçulmana, de acordo com os Censos de 2007.

Moçambique é um dos quatro países do continente africano “mais tolerantes relativamente à homossexualidade”, de acordo com um estudo levado a cabo pela Afrobarometer, em 2016. De acordo com o relatório da rede de investigação, 56% dos moçambicanos inquiridos “gostariam ou não se importariam” de ter um vizinho homossexual. Em África, destacam-se, positivamente, Cabo Verde, África do Sul e Namíbia (com, respectivamente, 74%, 67% e 55% de população tolerante); negativamente, sobressaem países como Senegal (com 97% de população homofóbica), Guiné-Conacri, Uganda, Burkina Faso e Nigéria (com índices de homofobia na ordem dos 95%).

Apesar dos 44% de moçambicanos que afirmam “não gostar moderada ou fortemente da ideia de ter um homossexual como vizinho”, a relativa boa posição do país pode dever-se à recente descriminalização da homossexualidade. Porém, ressalva a Afrobarometer, uma vez que não existem estudos anteriores, não há forma de estabelecer comparações e perceber qual o impacto que a alteração da lei teve ao nível das mentalidades.

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©Daniel Jack Lyons

Não existem bares ou paradas gay

Nos datados quartos do hotel Luso, Daniel fotografou muitos “amigos”, alguns “activistas” e pessoas que dão a cara pela causa “sem receio das repercussões”. Mas houve também quem, no último momento, recuasse na decisão de ter o rosto a descoberto na série. “Alguns retratos não foram incluídos precisamente por isso, pelo medo de represálias”, refere.

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Retrato do fotógrafo norte-americano Daniel Jack Lyons D.R.

Não existe, segundo o fotógrafo, um “local seguro” para os membros da comunidade LGBT moçambicana. Não existem bares gay ou mesmo gay-friendly. “Existem apenas bares que fingem que não vêem. (…) Não existe uma parada gay ou qualquer tipo de manifestação pública que vise a celebração dos direitos LGBT. Existe uma associação chamada Lambda que trabalha arduamente no sentido de combater o estigma contra a comunidade LGBT em todas as regiões do país. Mas até eles tiveram problemas ao nível do reconhecimento legal, uma vez que existe um impedimento no registo de organizações ‘que são contrárias à ordem moral, social e económica do país, que ofendam os direitos de terceiros ou o bem comum’.”

Ao P3, a organização, fundada em 2006, traçou um panorama um pouco mais soalheiro daquele traçado pelo fotógrafo. “Moçambique está numa posição privilegiada relativamente à questão das pessoas LGBT [no contexto africano]. Nas cidades há cada vez mais homossexuais a viverem abertamente como LGBT e a partilharem as suas experiências publicamente.” Algo que, escreve a associação por e-mail, é também “resultado de um grande trabalho de educação pública sobre o tema”. “O trabalho do Daniel é disso exemplo: são pessoas homossexuais e moçambicanas que se permitiram fotografar”, remata.

A Lambda sublinha, no entanto, que “a discriminação ainda é uma realidade no país” e que essa se deve também a uma “posição ambígua” por parte do Estado. É, dizem, graças a um certo posicionamento indefinido que “as pessoas LGBT continuam a conviver com discriminação nas escolas, o que dificulta a conclusão dos estudos e, consequentemente, condiciona o acesso a empregos mais apetecíveis”.

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