Estão a matar a bola

Cada vez é mais difícil retirar prazer do jogo. Se este caminho destrutivo prosseguir, o futebol português, por natureza periférico, acabará reduzido (se já não o estiver) à insignificância total.

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Nelson Garrido

Nunca concordei numa vírgula que fosse com opiniões que nos tentam convencer que o futebol é assunto para pessoas com falta de cultura, de pensamento estruturado, no fundo com falta de actividade intelectual tida como séria e exigente. Por isso, parece-me que a imagem que todos temos no nosso imaginário do labrego a ingerir litros de cerveja e a arrotar impropérios sobre o jogador A, o treinador B e o árbitro X, sobre o fora-de-jogo e o pontapé de grande penalidade, apenas vale como caricatura. E como caricatura cumpre a sua função, é engraçada e proporciona boas gargalhadas. Mas como às vezes se diz, toda e qualquer semelhança com a realidade é pura coincidência. Pronto, talvez não seja pura coincidência, mas seguramente não cobre toda a realidade.

Contudo, o espectáculo degradante e deprimente a que temos assistido nas últimas temporadas levou a uma espécie de conversão forçada da caricatura em algo com contornos cada vez menos distinguíveis da realidade, tornando cada vez mais difícil não ver como sensatas e razoáveis certas críticas que são feitas ao mundo da bola. Veja-se o caso dos famigerados (mas expressivos nas audiências) programas de debate (?) sobre futebol, verdadeiros atentados à decência e ao respeito, onde prevalece o insulto mais reles, o berro mais audível, a mediocridade mais ostensiva. É claro que se não houvesse uma predisposição doentia da comunicação social para estas insuportáveis “peixeiradas” tudo poderia ser mitigado. Mas isso não interessa porque não alimenta o apetite insaciável pela polémica mesquinha, pelo pequeno bate-boca.

E para que não restem dúvidas sobre a qualidade das actuações dos intervenientes nessas arenas de combate, deve o caro leitor lembrar-se de um assunto que mereceu horas e horas do habitual pseudo-debate, milhares e milhares de visualizações do mesmo vídeo insuportável, onde se procurava destrinçar se o que saía da boca de um indivíduo era cuspo ou apenas fumo (o incidente entre o anterior presidente do Sporting, Bruno de Carvalho, e o presidente do Arouca, Carlos Pinho).

Mas como nem tudo é tão mau assim, manda a honestidade intelectual que não se coloquem bons programas onde de facto se debate alguma coisa no mesmo saco dos outros que, infelizmente, compõem a esmagadora maioria: o Aposta Tripla da SportTv+, o Grande Área e a Grandiosa Enciclopédia do Ludopédio, ambos da RTP, e o Mais Futebol, da TVI24, figuram, numa mera opinião pessoal, entre as honrosas excepções.

Outra aberração, não menos insuportável, que a omnipresença do futebol no espaço mediático provoca, são os “tudólogos”. Para os mais desatentos que ainda desconheçam a espécie, fica a definição do dicionário da Priberam: “pessoa que comenta ou dá opiniões sobre qualquer assunto como se fosse um perito ou especialista de cada um desses assuntos”. É que por estes dias qualquer comentador que se preze não pode deixar de dar umas lições ao povo sobre finanças e tesouraria, os meandros da justiça desportiva, sobre a táctica e as triangulações, sobre o tudo e o nada, sobre o vazio e a verborreia utilizada para preencher esse vazio.

Podemos então chegar à conclusão que os referidos programas e os seus intervenientes são o principal problema, a principal fonte de toxicidade que contamina toda a discussão sobre a bola? Seguramente que não. O topo da pirâmide é ocupado pelos próprios clubes. O surgimento dos inenarráveis directores de comunicação (cujos escritos tantas vezes servem de assunto nos referidos programas), sempre prontos a destilar ódio e a destratar quem ouse questionar a doutrina oficial de cada clube, não resultou de outra coisa que não de uma opção clara e deliberada pela confusão, pela contra-informação e pelo caos comunicacional. São opções desta natureza que não podem deixar de suscitar uma certa perplexidade quando se fala em democracia no seio dos clubes. É que, até há relativamente pouco tempo, os três principais clubes do nosso futebol viviam num autêntico culto ao chefe (leia-se, presidente). Dois deles continuam alegremente nesse caminho e o outro só não continua porque, entretanto, implodiu. Quem não se lembra de ouvir relatos, nomeadamente de sócios participantes em assembleias gerais, que denunciavam o clima intimidatório e coactivo vivido naquelas reuniões?

O quadro actual do dirigismo no futebol português não tem nada de novo para oferecer seja nas ideias, seja nas práticas, seja na comunicação (irremediavelmente virada para o tenebroso inimigo externo). Os vícios de um sistema pouco transparente jamais poderão desaparecer, se as figuras permanecerem as mesmas. Sobre a sensação de poder absoluto que, inevitavelmente, se apodera de quem lidera os clubes durante décadas a fio ou tem esse objectivo, Miguel Poiares Maduro, antigo ministro e ex-membro do Comité de Governação da FIFA, defendia a limitação de mandatos. Não podia estar mais de acordo.

Serve tudo isto para dizer que está cada vez mais difícil retirar prazer do jogo, por tudo aquilo que nada tem a ver com a sua essência e o condiciona. Se este caminho destrutivo prosseguir, o futebol português, por natureza periférico, acabará reduzido (se já não o estiver) à insignificância total. Algo pouco ou nada compaginável com quem tem tanta sede de protagonismo.

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