Depois do fulgor da Operação Liberdade, oposição venezuelana volta ao lume brando

Impasse mantém-se na Venezuela. Guaidó pede a manutenção da luta de rua e marca greve, enquanto o chavismo celebra “fracasso” dos adversários. EUA e Rússia trocam acusações.

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Guaidó discursou em Caracas perante os seus apoiantes, apelando à realização de greves nos próximos dias CARLOS GARCIA RAWLINS/Reuters

O Dia do Trabalhador serviu como mais uma arena para o braço-de-ferro entre o Governo chavista e a oposição que na véspera tinha conhecido um novo ponto de tensão. Na ressaca da tentativa de dar novo fôlego à insurreição - baptizada agora como Operação Liberdade - promovida pela oposição a Nicolás Maduro, o autoproclamado Presidente interino, Juan Guaidó, pediu aos apoiantes para que não abandonem as ruas. “Estamos no caminho certo”, garantiu num discurso no bairro El Marqués, em Caracas, perante um mar de pessoas.

Mas esse caminho de desgaste lento para abalar a solidez do regime socialista venezuelano não parece muito diferente daquilo que a oposição tem feito até agora, desde que em Janeiro Guaidó invocou a Constituição para se declarar Presidente interino. “É preciso mantermo-nos nas ruas”, sublinhou. A partir desta quinta-feira, a oposição vai promover greves escalonadas até que seja convocada uma greve geral, como forma de aumentar a pressão sobre o Governo.

Quem esperava uma estratégia mais assertiva por parte da oposição, especialmente depois da manifestação de força da véspera, terá ficado desapontado. Na terça-feira, o mundo surpreendeu-se ao ver Guaidó ladeado por militares das Forças Armadas a anunciar o lançamento da Operação Liberdade, horas depois de um dos principais rostos da oposição, Leopoldo López, ter saído da prisão domiciliária pelo seu próprio pé.

Um dos pilares fundamentais da estratégia de Guaidó é a convicção de que, tal como em muitos sectores da sociedade, também entre os militares existe uma grande massa de descontentes – afectados pela crise económica, ou simplesmente desiludidos com a Revolução Bolivariana – que estaria disposta a apoiar uma mudança política. Porém, até esta semana, essa brecha nas Forças Armadas tardou em emergir. A libertação de López por elementos dos serviços secretos militares (Sebin) e o anúncio de uma operação com aparente respaldo armado pareceram vir mudar o jogo.

Porém, ao longo do dia, as principais chefias militares foram reafirmando a sua lealdade ao regime de Maduro e depressa se percebeu que o passo dado por Guaidó talvez tivesse sido prematuro. Foi isso mesmo que disse, por exemplo, o general e ministro brasileiro Augusto Heleno, que afirmou que os acontecimentos mostraram que os militares venezuelanos “estão na mão de Maduro”. Ao contrário do que aconteceu na véspera, esta quarta-feira Guaidó não apareceu em público com militares.

O regime também se mobilizou para os habituais festejos do Dia do Trabalhador, mas foram os acontecimentos da véspera a mobilizar as atenções dos seus dirigentes. A nota comum foi a de que a “tentativa de golpe de Estado” levada a cabo pela oposição fracassou e que os militares voltaram a demonstrar a solidez da liderança de Maduro. O Presidente venezuelano desvalorizou a acção da oposição como uma “escaramuça golpista”, enquanto o presidente da Assembleia Constituinte, Diosdado Cabello, uma das figuras mais influentes do chavismo, as descreveu como “improvisação”. “Hoje, ninguém sabe quem os lidera”, afirmou.

Num discurso feito no final da tarde de quarta-feira, Nicolás Maduro saudou os venezuelanos que saíram à rua para dizer “não ao golpe de Estado” e disse que quem quer chegar à Presidência só tem de “ir a eleições e ter os votos do povo”. E acrescentou que a justiça está à procura de quem ajudou na libertação de Leopoldo López. Aproveitando para criticar “o imperialismo norte-americano”, Maduro disse que a oposição busca uma guerra civil e que os “golpistas” enganaram a Casa Branca com mentiras sobre o que se passa na Venezuela.

Negociações secretas

Outra das vias que estaria a ser explorada pela oposição também parece estar agora mais longe. O conselheiro para a Segurança Nacional da Casa Branca, John Bolton, revelou que três destacados dirigentes do regime estariam em conversações com a oposição para negociar uma saída de Maduro e o início de uma transição política. Eram eles o ministro da Defesa, Vladimir Padrino, o presidente do Supremo Tribunal de Justiça, Maikel Moreno, e o comandante da Guarda de Honra Presidencial, Iván Rafael Hernández Dala.

Na quarta-feira, o enviado do Departamento de Estado para a Venezuela, Elliott Abrams, afirmou à agência Efe que os três “desligaram os seus telemóveis”, dando a entender que essas conversações terão descarrilado.

Ninguém confirmou abertamente se o diálogo teria chegado mesmo a existir. Mas um ex-militar apoiante da oposição garantiu ao jornal espanhol El Confidencial, sob anonimato, que o processo estava em curso até ter sido interrompido pelo que disse ser o “personalismo de Guaidó e de López”. Segundo este militar, o levantamento deveria ter ocorrido no dia 2 de Maio, mas o Presidente interino decidiu antecipar em dois dias o início do processo. “Agora já não têm o apoio dos generais mais influentes das Forças Armadas”, afirmou o ex-militar, que descreveu os dois líderes oposicionistas como “amadores”.

Tensão diplomática

Na esfera diplomática, os alinhamentos permanecem estanques. A generalidade dos países sul-americanos mantém o apoio a Guaidó, bem como os Estados Unidos e a União Europeia, enquanto Maduro tem do seu lado a Rússia, Cuba, China, Turquia, entre outros.

A crise venezuelana fez, no entanto, aumentar a fricção entre Washington e Moscovo, com ambas as potências a exigirem o afastamento da outra do assunto. O ministro dos Negócios Estrangeiros russo, Serguei Lavrov, avisou o seu homólogo Mike Pompeo numa conversa telefónica nesta quarta-feira de que novas “acções agressivas” por parte dos EUA na Venezuela terão graves consequências e acusou Washington de “interferência” nos assuntos internos do país sul-americano.

Pompeo disse, por seu turno, que as acções da Rússia e de Cuba “estão a desestabilizar a Venezuela” e põem em causa as relações bilaterais entre Washington e Moscovo. Em declarações separadas, Bolton também apontou baterias à Rússia, mostrando que, depois da Ucrânia e da Síria, a crise venezuelana se prepara para ser a nova arena de confronto entre as duas potências.

“Este é o nosso hemisfério, não é onde os russos deveriam interferir”, afirmou Bolton, avisando que a situação “não vai contribuir para a melhoria das relações” entre os dois países.

Com a crise venezuelana de regresso a um impasse, o seu desfecho permanece uma incógnita. O analista do Council on Foreign Relations Shannon O’Neil lembra que “o Exército ainda não se deparou com o seu momento Tiananmen ou Praça Tahrir e não se confrontou com a possibilidade de disparar contra cidadãos desarmados”.

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