Nada a esconder

Muitos casais consideram que “ver” o telemóvel do parceiro é algo absolutamente normal e aceitam-no como algo inerente a uma relação de confiança. Mas, se confiam, porque sentem essa necessidade em ver e procurar, vasculhar e controlar?

O filme Nada a esconder, do realizador Fred Cavayé, confronta-nos com uma realidade muito actual e pertinente. Será que podemos partilhar com os nossos companheiros/as ou namorados/as tudo o que recebemos ou enviamos de forma virtual? Poderão eles ter acesso ilimitado a todos os nossos emails, mensagens ou chamadas telefónicas? Questionado de outra forma, será que escondemos todos alguma coisa? Ou somos assim tão transparentes, leais e honestos?

Neste filme, um grupo de amigos junta-se para jantar e eis que uma personagem (psicóloga, pois claro) tem a ideia de partilharem entre todos qualquer mensagem, email ou chamada telefónica que recebam no telemóvel. Uns mostram-se mais resistentes, outros nem tanto, e a verdade é que acabam por iniciar este jogo. Que, como se imagina, tem um resultado desastroso.

Ao longo da noite, entre as entradas, o pão, o vinho e a sobremesa, o prato principal parece ser mesmo a expectativa que se gera em torno dos vários telemóveis. Alinhados no centro da mesa, aqueles tocam e vibram ao ritmo da vida pessoal de cada um dos presentes. E a cada toque ou vibração, há um coração que quase salta pela boca. Quem será e o que dirá? É desta vez que serei exposto? Claro está que, com este jogo, os segredos mais escondidos vêm ao de cima. Desde as traições a dobrar ou a triplicar, a homossexualidade não assumida, as cirurgias estéticas não reveladas, a iniciação sexual de uma filha ou os amigos virtuais de cariz sexual, tudo parece emergir. Sem filtro, de forma abrupta, todas as realidades mais sombrias parecem subitamente ganhar vida e, expostas perante todos, ganham uma dimensão monstruosa.

Pois bem, o desafio está lançado e várias questões se impõem. Será que teríamos a coragem de expor desta forma as nossas conversas mais privadas? Mais, será que alguém tem o direito de nos exigir tal coisa? Olhamos à nossa volta e a realidade é clara. Por mais que o tentem esconder, negando-o, a verdade é que muitas pessoas têm o hábito de vasculhar o telemóvel dos parceiros. E vasculhar é o termo certo, tendo em conta aquilo que acontece. Espera-se que o parceiro entre no banho ou adormeça para iniciar a busca. Aproveitam-se os descuidos de uma página aberta no computador e encontra-se uma porta de entrada. Com maiores requintes, instalam-se sistemas de controlo e a pessoa é vigiada 24h por dia sem um pingo de suspeita. Antes ainda, muitas vezes, exigem-se as passwords e os códigos de acesso. Afinal de contas, “se me amas, é isso que deverás fazer. Não temos nada a esconder”.

Mas será este comportamento uma prova de confiança ou, ao invés disso, de clara desconfiança? Estamos perante um comportamento que traduz lealdade, “porque sou tão fiel, honesto e transparente que até te entrego as minhas senhas de acesso” ou, pelo contrário, de deslealdade e devassa da reserva e da vida privada?

Muitos casais consideram que “ver” o telemóvel do parceiro é algo absolutamente normal e aceitam-no como algo inerente a uma relação de confiança. Mas, esperem lá. Se confiam, porque sentem essa necessidade em ver e procurar, vasculhar e controlar? Há aqui qualquer coisa que não bate certo. Numa relação de casal, a confiança é uma das pedras basilares, a par do amor, do respeito, da amizade e da lealdade. Pilares sobre os quais é possível erguer uma relação sólida e estruturada, tão sólida ao ponto de conseguir enfrentar ventos e tempestades. Abalada esta confiança, tudo treme.

Se sentimos a necessidade em invadir o espaço pessoal do outro ou, pelo contrário, aceitamos que o outro o faça em relação a nós, temos que parar para reflectir. É esta uma verdadeira relação de confiança? Não estaremos nós perante a verdadeira liberdade quando temos a possibilidade de viver de páginas abertas, sem nada a esconder e, ao mesmo tempo, sem ninguém que nos controle?

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