Defender a democracia 45 anos depois

Sugiro mesmo que os políticos portugueses recortem a entrevista e passem a usá-la como mantra diário para a sua vida.

“Os deputados e os membros dos cargos políticos não podem ser tratados como cães. Ou pior do que cães, porque há cães que são muito bem tratados.” O apelo foi lançado por Eduardo Ferro Rodrigues, presidente da Assembleia da República, na entrevista que deu ao PÚBLICO, simbolicamente editada a 25 de Abril, e em que assumiu ideias que reafirmou no discurso da sessão solene na Assembleia da República.

Eduardo Ferro Rodrigues não é um político qualquer. Aos 69 anos, é a segunda figura do Estado. Tem um sólido percurso político no MES e depois no PS. Foi ministro. Foi secretário-geral dos socialistas (2002-2004), num momento de transição difícil, em que teve de suceder a António Guterres e ver o partido voltar à oposição. E foi, nesse início do século XX, vítima de uma das mais hediondas campanhas de ataque, com contornos populistas, feitas a um líder partidário em Portugal, ao ver o seu nome envolvido no processo da Casa Pia, até com recurso a fake news, num tempo em que a revolução digital ainda era uma criança e em que as redes sociais não tinham o peso que têm hoje.

É um actor político de primeiro plano e, até pela sua própria experiência, está em situação privilegiada para reflectir sobre o momento que se vive na política portuguesa, 45 anos após a Revolução dos Cravos. Provavelmente por isso, por ter o domínio directo e a vivência, muitas vezes na primeira pessoa, desse percurso democrático em Portugal, Eduardo Ferro Rodrigues levanta uma questão central e essencial para perceber e retratar o momento que se vive hoje. Falo da forma como em Portugal a política entrou em velocidade cruzeiro no mundo do relativismo ético.

Quando os valores éticos parecem ter perdido peso no exercício da política, bem como no funcionamento da sociedade em geral; quando muitos dos que se entregam à função política não a entendem enquanto missão de serviço e dedicação à causa e ao interesse público e mostram estar permeáveis a interesses privados – às vezes até ao seu próprio interesse pessoal, é importante que alguém com o peso político e a capacidade discernimento e de reflexão de Eduardo Ferro Rodrigues venha lembrar aquilo que é vital numa sociedade democrática, ou seja, que a democracia é uma construção política e social baseada no princípio da igualdade de tratamento e que tem como objectivo permitir a governação racional e equilibrada que respeite todos, que respeite o bem comum, que respeite o interesse público.

A entrevista de Eduardo Ferro Rodrigues ao PÚBLICO é uma imensa e sábia lição sobre política e sobre o que é a missão pública dos políticos. É certo que como presidente da Assembleia da República não deixa de frisar que “o facto de haver uma minoria que pode criar problemas comportamentais do ponto de vista democrático não significa que todo um Parlamento possa ficar com a mesma imagem”. E faz questão de salientar que “em todas as sondagens em que se pergunta sobre a imagem do Parlamento, este tem uma imagem positiva, ao contrário da ideia que muitas vezes se tem”. Não deixa, porém, de advertir que “é evidente que os políticos têm de se dar ao respeito”.

Sugiro mesmo que os políticos portugueses recortem a entrevista e passem a usá-la como mantra diário para a sua vida – pela importância do que Eduardo Ferro Rodrigues lembra sobre o relativismo ético que invade a política portuguesa. “É evidente que é necessário não dar armas aos populismos. Um certo tipo de atitudes, um exercício do poder com uma certa leveza dá armas ao populismo”, diz o presidente da Assembleia da República sobre o familygate. E acrescenta: “Acho que é mais vulgar acontecer este tipo de coisas em gerações mais novas e que têm uma relação com o poder diferente, que estão mais à vontade na gestão do exercício dos cargos públicos. É preciso ter sempre muito cuidado com esses excessos de à vontade.” Contudo, salvaguarda: “Não quero falar disto das gerações com superioridade moral. São gerações diferentes e têm uma relação com o poder também diferente e têm uma vivência do exercício do poder diferente. (…) Hoje em dia é tudo muito menos exigente. Julga-se, e mal, que a democracia está consolidada e que tudo é possível. Não é.”

Claro que não é, nem deve ser tentado esse caminho. A fragilidade da democracia é proporcional à sua força atractiva enquanto promessa de regime político que melhor garante a governação racional em nome do interesse público, do respeito pelo interesse de todos, de forma inclusiva das diversidades. Ora, para isso, os actores políticos têm de começar a dar-se a si mesmos ao respeito, como sublinha Eduardo Ferro Rodrigues.

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