Days Gone devia ter feito menos para conseguir mais

Chegou à PlayStation 4 uma aventura com uma ambição impressionante. A área de jogo é um mundo para descobrir, mas ao apresentar uma longevidade tão grande, a Bend Studio não se esquivou a situações repetitivas.

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Como palco, o mundo de Days Gone deixa impressões inequívocas. Os problemas surgem quando percebemos que o espectáculo que lá decorre chega a uma longevidade colossal graças a algumas missões repetitivas e a objectivos desinteressantes. Nem tudo é mau neste exclusivo PlayStation 4, mas para vivermos os espaçados pináculos temos que passar demasiado tempo no pastoso.

Obra declaradamente de acção na terceira pessoa em cenário aberto, a Bend Studio leva-nos até uma versão pós-apocalíptica de Oregon. O protagonista é Deacon St. John que, antes de a epidemia ter tomado conta deste mundo, era membro de um clube motard conhecido como Mongrels MC. Agora há morte por todo o lado, há o constante lutar para viver mais um dia, por um amanhã que será novamente marcado pela angústia.

Nos momentos iniciais, Deacon e Sarah, a sua mulher, são separados. Sarah está gravemente ferida e o protagonista coloca-a num helicóptero como uma última esperança. A dúvida de querer saber para onde é que Sarah foi levada e se está viva alimenta uma boa porção de Days Gone, motivando Deacon a percorrer e a vasculhar inúmeras regiões do High Desert. É uma aventura nómada: antes, durante, e depois de sabermos o que aconteceu ao amor da sua vida.

São mais de trinta horas investidas nesta realidade, tempo suficiente para a produtora colocar inúmeras sequências com flashbacks pensados para fazer os jogadores terem mais contexto, mas também para que haja um envolvimento emocional com estas personagens. O dia em que se conheceram, o momento do pedido de casamento, o casamento propriamente dito, enfim, estilhaços de vidas passadas. Contudo, estas cenas começam a sabotar-se devido ao que o jogador faz.

Na maioria dos casos limitamo-nos a ver o que está a acontecer no ecrã durante longas sequências de marasmo. Mesmo quando há algo para fazer, não esperem ter um papel activo nos eventos mais marcantes, pois Deacon é encarregue, por exemplo, de recolher flores. Isto pode parecer um detalhe, mas é um indício de um mal que acabará por marcar a obra.

Conforme vamos progredindo pelas seis áreas distintas do mapa, Deacon vai parando em acampamentos que são pequenas sociedades, ainda que com leis bastante diferentes do mundo actual e que chegam a abordar ditaduras e a escravidão. A figura de proa de cada um destes locais atribui missões ao protagonista, que depois de as realizar ganha experiência, dinheiro e aumenta o nível de confiança por parte doo local. Esta confiança conquistada é importante, uma vez que algumas das melhorias para a moto e algumas das armas ou itens só ficam disponíveis depois de chegarem a um determinado nível.

São inúmeras missões em cima das missões principais que fazem o arco narrativo avançar. O problema é que tudo isto acaba por ceder e dar lugar a uma sensação de repetição.

Perseguir alguém ou ir buscar itens só pode ser realizado um determinado número de vezes até o jogador sentir que está a andar em círculos. E esta repetição acaba mesmo por infectar a linha principal do jogo. Mais de vinte horas depois de o jogo ter começado, foi-me pedido para ir buscar fermento. Pouco tempo depois foi-me pedido para ir buscar um leitor MP3. Esporadicamente, isto seria uma distracção para apreciar as vistas e aniquilar mais umas dezenas de inimigos. Com a bagagem de ter feito isto incontáveis vezes, fica a clara sensação de que a produtora fez do protagonista um tarefeiro.

Algumas das missões proporcionam momentos memoráveis, seja pela adrenalina do que é proposto – como, já na recta final, aniquilar uma horda de Freakers, as criaturas zombie do jogo, com cocktails molotov de napalm, invadir um pólo científico ou ir investigar uma barragem – seja pelo design dos locais que visitamos, como as cavernas ou a passagem por um desfiladeiro. Todavia, para os jogadores lá chegarem terão que realizar muitas tarefas corriqueiras.

Há ainda tarefas para fazer no próprio mundo de jogo. Ninhos de Freakers para serem queimados e assim ajudar a diminuir a sua presença nessa área, pontos de controlo NERO em que temos de restabelecer a energia colocando combustível em geradores – e, ocasionalmente, um fusível.

Novamente temos de lidar com as criaturas, mas somos recompensados com um ponto para aumentar a energia, a saúde ou o foco do protagonista. Isto, além de escutarmos conversas que complementam o arco narrativo: o helicóptero que transportou a mulher de Deacon no início da aventura pertencia a esta agência governamental e um dos seus funcionários, O’Brian, também nos vai dando tarefas durante a primeira parte do jogo enquanto investiga o paradeiro de Sarah. Há também bases de inimigos humanos que podem e devem ser conquistadas, pois existe um bunker com recompensas para o protagonista.

A experiência acumulada pelas missões ou pelas centenas de mortes serve para Deacon ir subindo de nível e ganhar pontos que servem para ir desbloqueando habilidades. Estas melhorias vão desde o aumento da velocidade de regeneração de energia à recuperação de energia quando sofrem dano, passando pelo aumento do foco. Não só são recompensas pelo tempo que investem; são indispensáveis como preparação para a parte final e mais exigente da obra.

Isto significa que, mesmo que possam ser descritas como “secundárias”, as missões e actividades fora do arco narrativo são sempre recomendadas, não só para experienciarem Days Gone como um todo, mas também pela sua importância na progressão. A moto de Deacon, com a qual se deslocam pelo mapa, também pode ser melhorada com peças que aumentam o desempenho, a resistência, a capacidade do alforge para munições. De salientar que a moto sofre dano (que pode ser consertado nos mecânicos presentes nos acampamentos ou com sucata que forem recolhendo no cenário) e consome combustível, o que obriga a estarem atentos a jerricãs nas viagens ou a postos de combustível abandonados.

O tamanho do depósito é um dos pontos que pode ser melhorado com o passar do tempo, mas é algo que tolda um pouco a liberdade da exploração, sendo sempre um medidor a que estamos atentos e com receio de não ter combustível suficiente. Felizmente, viajar pelo mapa é quase sempre algo prazeroso, pois a jogabilidade da moto tem peso e são viagens que transmitem a sensação de aventura - tanto pelas vistas, como pelos perigos que estão sempre à espreita (Freakers, mas também Drifters e Marauders e até os Rippers – que são inimigos humanos – e ainda pumas, ursos e até corvos infectados).

Além do combate corpo-a-corpo com armas – que, além da faca, podem ir de tacos de basebol (com ou sem pregos) a picaretas, passando pela minha preferida, um machado de metal –, Days Gone permite também acção furtiva e, obviamente, o abrir fogo com uma panóplia de armas. O combate não é mau. Não se pode dizer que haja uma mecânica nova que vá fazer escola, mas sente-se que acompanha a evolução do jogador.

Tudo isto pode parecer muito a ter em conta, mas as horas são tantas que acaba por ser tudo assimilado e até quase automatizado.

Days Gone é maior e mais longo do que a maioria dos jogadores está à espera, mas derradeiramente fica a sensação de que é instalado um ciclo demasiado fácil de prever e que quase chega a danificar o impacto, a diversão e a emoção que as missões e avanços verdadeiramente bons têm. É também um jogo de descoberta, de embalar, até perceber o que aconteceu a Sarah e de lidar com as repercussões dessa descoberta.

Uma área de jogo tão grande só resultava com partes que se completam com as suas diferenças. Entre bosques e restos de pequenas localidades, temos pela frente lamaçais, longas estradas com carros e camiões deixados ao abandono, visitas a locais gelados e a outros que parecem saídos de Fallout, tamanha é a desolação. Há muito para ver em paisagens que mudam com o sol e a chuva, o dia e a noite; que transmitem uma desolação e uma solidão eficazes.

Jogado numa PlayStation 4 Pro, ainda que o carregamento inicial seja longo e que haja quebras notórias na framerate, é um mundo que tem um magnetismo forte capaz de nos puxar até si.

Esta imersão é, no entanto, quebrada quando nos deparamos com os inúmeros erros técnicos. As situações caricatas, como armas e corpos que desaparecem ou criaturas que sobem na vertical até desaparecerem, não são muito más; as situações em que o mundo de jogo se abre e a personagem cai para o vazio ou que a moto fica presa numa pedra irritam porque temos que recarregar o jogo e perder os últimos minutos de progresso feito; as situações em que somos avisados que o ficheiro com todo o progresso feito ao longo de mais de vinte horas está corrompido são verdadeiramente preocupantes. Felizmente, consegui recuperar o que tinha feito numa gravação automática, mas fica claramente o aviso de que toda esta ambição está assente em alicerces que vacilam. É um feito, sim, mas não é um feito imaculado. E isto depois de ter passado por várias versões do jogo, ou seja, de o ter experimentado enquanto o mesmo foi recebendo várias actualizações.

Mais segura e igualmente boa é a banda sonora. Assinada pelo compositor Nathan Whitehead, conta com temas que sublinham verdadeiramente os momentos mais marcantes.

Ainda no campo da sonoplastia, de destacar que a vocalização das personagens é também sólida e só não brilha mais porque há momentos em que falta profundidade às linhas de diálogo. Sente-se os actores a fazerem o melhor que sabem com o material, mas o resultado é uma frieza que fica aquém do que um mundo em ruínas fará certamente à psique humana. Como é habitual nos jogos publicados pela Sony, o nosso mercado recebeu uma versão totalmente localizada em português (texto e vozes), com Deacon a ser vocalizado pelo actor Filipe Duarte.

A primeira grande produção da Bend Studio não é claramente tudo o que poderia ter sido, sendo vítima da sua própria ambição desmedida.

Olhando para trás, Days Gone brilha em algumas das missões, algumas das lutas, algumas das expedições que fazemos solitariamente, algumas das personagens. A palavra-chave é mesmo algumas, porque uma aventura com esta envergadura precisava de um renovar mais vigoroso do interesse que o jogador tem nos acontecimentos, não de esperar que algumas horas boas contagiassem o resto: quanto mais longo for o jogo, mais diluídas essas horas parecem e Days Gone só tinha a ganhar em fazer menos para conseguir mais.

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