Abril e a “pós-modernidade inorgânica”

Esta pulverização de reivindicações e de centros de poder escapa às tradicionais grelhas de análise e inaugura, a meu ver, a era da “pós-modernidade inorgânica”, de que estes movimentos “espontâneo-provocados”, incontroláveis por natureza, vivendo da surpresa, a par das fake news e da substituição de um jornalismo de factos por um pseudo-jornalismo de lixo de redes sociais, sem fact-checking, são apenas epifenómenos.

Ontem, em conferência na Faculdade de Direito da Universidade do Porto, a propósito dos mais recentes desenvolvimentos em sede de política criminal nos EUA e na Europa, a dada altura, o colega espanhol comentava como éramos afortunados por não termos um partido de extrema-direita em Portugal.

Retorqui-lhe que estava um na forja, capitaneado por André Ventura, e daí passei para as características dos movimentos inorgânicos que começam a ser cada vez mais visíveis. Sucedeu com a recente paralisação dos motoristas de matérias perigosas, com a greve dos estivadores e, também, com este certo “inorganicismo” com que o mundo político-partidário começa a surgir entre nós. E tal é pior que o populismo, porque tais movimentos já não exigem: fazem e apresentam as coisas como facto consumado, não tendo qualquer controlo dos ditos – adaptando linguagem criminológica – “instrumentos formais e informais de controlo social”. Assim nos horrorizámos com o sucedido na Nova Zelândia e no Sri Lanka. Esta pulverização de reivindicações e de centros de poder escapa às tradicionais grelhas de análise e inaugura, a meu ver, a era do “pós-modernismo inorgânico”, de que estes movimentos “espontâneo-provocados”, incontroláveis por natureza, vivendo da surpresa (veja-se o recente incidente quando Costa discursava), a par das fake news e da substituição de um jornalismo de factos por um pseudo-jornalismo de lixo de redes sociais, sem fact-checking, são apenas epifenómenos.

Nos idos de 90 do passado século, pelo 10.º ano, uma muito atenta professora de Inglês propôs-nos que realizássemos um trabalho sobre temática política. O grupo que integrei interessou-se pelo movimento dos skinheads em Portugal. Não havia internet e a escola pública tinha uma pobre biblioteca. O PSR foi o lugar escolhido para sabermos coisas. Fomos recebidos com um misto de alegria e receio. Afinal, as publicações clandestinas desses grupos existiam e aquele partido que, associado a outros, deu origem ao Bloco, tinha conseguido apanhar alguns. Ficámos impressionados pelo conteúdo racista e xenófobo, putos de 16 anos, mais coisa menos coisa. Tirámos umas fotocópias – o todo da modernidade de então –, com medo nosso e de quem nos recebeu no PSR, e surpreendemos todos – professora incluída – com o resultado da nossa modesta investigação. Toda a gente pensava que isso ou não existia ou era de tal modo marginal que nem haveria nada publicado ou grupos com o mínimo de organização. Enganavam-se.

Como se enganam os que hoje acham que o Vox ou o Alternative für Deutschland, ou que o autoritarismo de Orbán, na Polónia, na Turquia e em cada vez mais Estados europeus é algo que não chega a um país de “brando costumes”, no que é, como se sabe, uma mentira histórica. 45 anos não são nada para se esquecer o que foi a noite de extrema-direita de Salazar e Caetano e, por isso e tantas outras razões, fico orgulhoso pelo facto de o nosso país conter uma espécie de “cláusula pétrea” de proibição de partidos ou quaisquer movimentos que perfilhem ideologia fascista ou racista. O problema está em que a lei que regula a inscrição de tais movimentos pelo Tribunal Constitucional (TC) – Lei Orgânica n.º 2/2003, de 22/8 – se fica pelo que está escrito, de entre outros, nos estatutos, declarações de princípios e programas (art. 6.º), não contemplando, ao menos na letra da lei, que se tenha em conta o que é o discurso público desses requerentes.

Prisão perpétua, culpabilização de minorias pelo crime e por outros problemas sociais, castração química para delinquentes por crimes sexuais, fechamento das fronteiras, um “Portugal para os Portugueses”, são tudo coisas que o comentador televisivo de futebol defende. É interessante como a bancada desses programas é rampa de lançamento político. Afinal, não era a religião, mas o futebol, “o ópio do Povo” (Marx).

É essencial que a Lei seja alterada no sentido de se dever ter em conta a mensagem difundida pelos candidatos a partidos, sob pena de o TC nada controlar, no rigor dos princípios. Um fascista não se diz fascista, ainda por cima se souber que, ao menos formalmente, não o pode escarrapachar nos estatutos de um partido. Não sejamos ingénuos!

Como no dia de hoje é repetido como um mantra, a Liberdade e a Democracia são construções diárias muito frágeis e nada têm de perene. Donde, não nos “ponhamos a jeito” e saibamos construir, dentro do Estado de Direito, as muralhas necessárias de auto-conservação de um sistema que, não sendo perfeito, é o menos mau de todos.

Dizia-me o colega espanhol que corria em Madrid a piada de que muitos dos nossos vizinhos iam pedir asilo a Portugal se se formasse uma “geringonça de direita” com o Vox, na sequência das eleições. Depois do que lhe disse, confidenciou-me que talvez fosse melhor procurar outras paragens…

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