Sobre carreiras (académicas) em ciência

Um problema em debates sobre a sustentabilidade da Investigação e das carreiras em ciência nunca é referido, apesar de ser inevitável: de modo a poder participar de forma eficaz na discussão qualquer interlocutor tem eventualmente de sair fora, não só da sua área de conforto (o que pode ser bom), mas também da sua área de competência (o que pode ser mau). E isto aplica-se, quer a discussões mais “internas” (por exemplo, sobre os modelos com que áreas distintas realizam investigação), quer mais “externas” (por exemplo, as condicionantes financeiras e legais transversais a todo o processo). E temos de estar disponíveis para assumir as nossas limitações, e potencialmente receber lições (desde que úteis) de toda a gente. Por motivos de percurso, só numa fase recente da minha carreira me envolvi mais a fundo, quer na avaliação interna de colegas professores e investigadores de carreira, quer na contratação de novos quadros. Com o constrangimento duplo de sair da minha área de conforto, e de ter de adquirir rapidamente novas competências.

Desde logo: avaliar é tão necessário quanto difícil. E todos devem ser avaliados, mas poucos o querem verdadeiramente ser. Por outro lado, os critérios existentes tendem a funcionar por defeito, detetando sobretudo casos extremos de mau desempenho, seja na carreira docente (professores que têm uma componente letiva e de investigação no âmbito das suas atividades), seja na de investigação (investigadores que até podem dar algumas aulas, mas cujo foco primordial é, obviamente, a investigação científica). Só que os professores de carreira têm, pelo menos, de contribuir para a instituição dando as aulas que lhes são atribuídas (pelas quais a universidade é, em parte, financiada), e pode-se verificar se o fazem ou não, agindo em conformidade. Não sou ingénuo: sei que muitos ainda se estarão a rir com a frase que acabaram de ler, dado o modo como alguns encaram a missão de ensinar (e há casos destes em todo o lado). Seja como for: há mais mecanismos disponíveis para abordar eventuais problemas do que os que existem para balizar de forma consequente o trabalho dos investigadores de carreira. Percebe-se, pois, o desconforto quase universal de reitores com a carreira de investigação, preferindo professores que também têm a investigação como parte integrante das suas tarefas. No segundo caso, o contratado tem oportunidade de ser útil a dois níveis, e é mais difícil ser completamente inútil se for uma contratação falhada (e há casos destes em todo o lado).

O que é que se perde ao privilegiar este modelo? Disponibilidade, já que dar aulas reduz o tempo para fazer investigação. É por isso que o meu centro cria, desde sempre, alguns lugares de quadro para investigadores (infelizmente poucos, e fora da estrutura da Universidade de Coimbra) para que façam, com segurança, investigação de qualidade; de modo que seria impossível algo como o “caso Maria Mota” acontecer connosco. Mas o risco (para além de contratações falhadas, que também temos) é que, sendo os financiamentos de ciência flutuantes e imprevisíveis, se não formos bem-sucedidos a esse nível toda a estrutura fica comprometida. Fora um financiamento sério e previsível de centros de investigação, uma solução sustentada de longo prazo terá sempre de passar (também) pelas universidades. E se os lugares que estas abrem são, sobretudo, de professores, é com isso que temos de trabalhar.

Enquanto jurado de concursos para docentes a minha regra é procurar elementos com um potencial diferenciador, se possível muito melhores do que eu próprio com a mesma idade. E, dada a autêntica revolução na ciência em Portugal nas últimas décadas, felizmente não é difícil, haja para isso rigor e independência nos concursos (mais uma vez: não sou ingénuo, haver mecanismos não é o mesmo que aplicá-los). Qual é a questão? É que os candidatos melhores são excelentes investigadores, e temem cometer uma espécie de “suicídio científico” caso entrem para a carreira docente por terem de dar muitas aulas. Preferem, por paradoxal que isto pareça, a precariedade de contratos de investigador a tempo inteiro (aqui ou no estrangeiro), porque confiam nas suas capacidades, e acham que só assim atingirão os objetivos de longo prazo a que se propuseram. De resto, muitas vezes não recompensamos adequadamente os mais competitivos (como se viu com a situação dos Investigadores FCT no âmbito da norma transitória do decreto-lei 57/2016).

Há várias soluções possíveis, mas é necessária uma discussão séria sobre estatutos e carreiras, de modo a valorizar mecanismos não discriminatórios que apoiem todos, evitando a rigidez burocrática atual que tende a afastar os melhores. Algo que permita aos alunos terem aulas de qualidade, e aos docentes fazer, com um mínimo de compromissos, a investigação a que se propuseram. E com a possibilidade, devidamente balizada, de nem todos terem de fazer exatamente o mesmo ao mesmo tempo, ou ao longo de toda uma carreira. Para termos uma atividade científica realmente diferenciadora que transcenda os casos pontuais conhecidos, urge introduzir plasticidade no sistema, em paralelo com mecanismos de avaliação (na pedagogia como na ciência) exigentes, independentes (com avaliação externa, se necessário), sem métricas cegas, e, acima de tudo, que tenham consequências concretas. Se nos focarmos apenas no “quão difícil é”, ou naquilo que “está (ou não está) na lei” (geralmente as desculpas mais usadas para evitar qualquer discussão), teremos exatamente o que merecemos: “avaliações” que só o são em nome, e o nivelar por baixo. É um sistema que afasta os melhores e (não sei se não é pior) atrai os medíocres.

Claro que as consequências de uma avaliação não podem ser só punitivas, mas também recompensar quem faz mais e melhor, apoiar quem teve um mau período, e ajudar sempre quem queira evoluir. Não temer a diferença, e ter em simultâneo “paus e cenouras”, no fundo. Deve haver lugares seguros e bem pagos onde haja condições para fazer investigação independente de qualidade. Mas não podem ser muitos, têm de se integrar na missão global das instituições (não contra elas), deve ser difícil obtê-los e o único critério tem de ser o mérito. Claro que isto implica coisas desagradáveis, como a (sub)empregabilidade de doutorados que é quimérico pensar resolver por decreto ou só com a academia. Mas nunca resolveremos problema nenhum sem o enfrentar na sua complexidade global, e sem utilizar nestas discussões as metodologias que usamos diariamente em ciência; no sentido de estarmos disponíveis para transcender as nossas limitações e deixar de lado o que achamos que sabemos.

O autor escreve segundo o novo Acordo Ortográfico

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