Lembranças de 25 de Abril

Cada um tem as suas lembranças do 25 de Abril. Estas são as minhas. Uma história de coragem e desprendimento que hoje contarei aos meus filhos.

Amanhã completam-se 45 anos sobre a revolução de 25 de Abril. Tinha 10 anos e guardo poucas memórias da época. Lembro-me de estar na escola primária e a meio da manhã a Dona Berta – era assim que tratávamos a professora – nos ter mandado para casa porque havia uma revolução em Lisboa. Recordo-me também de 1 de Maio. Os cobradores da “Transul” (a empresa de camionagem de Almada) decidiram não cobrar bilhetes para assinalar o dia do trabalhador. As pessoas apinharam-se nos autocarros, de um lado para o outro, vezes sem conta, a celebrar o prazer da transgressão e a gritar vivas à liberdade.

Sou da geração formada na transição da ditadura para a democracia e nos anos conturbados do PREC, com o país a ir, ora para um lado, ora para outro. A vida pública era totalmente dominada pela retórica ideológica. Cresci a ouvir falar de liberdade, de democracia, de direitos, de comunismo, socialismo e fascismo, de pides e bufos, de censura e opressão, de trabalhadores e patronato. A minha geração foi a primeira beneficiária das conquistas da revolução. No meu caso foi a democratização do acesso aos bens públicos. Filho de pais operários, sem posses, órfão muito cedo, jamais teria tido a possibilidade de concluir uma licenciatura sem os apoios sociais do Estado, que me deram uma bolsa para comer nas cantinas e uma residência universitária para dormir. A par da liberdade, foi isso o que 25 de Abril me deu de mais palpável e duradouro.

Felizmente, não sofri as experiências negativas da ditadura. Não tive familiares próximos perseguidos. Só mais tarde percebi a dimensão da tragédia com as histórias que fui ouvindo, contadas por um tio por afinidade, cuja memória me ocorre sempre nesta data. Chamava-se Henrique Barbeitos, tinha nascido em Barcelos, numa família com longa tradição republicana e democrata, era comunista e médico, estabelecido em Almada desde 1936. Antifascista, participou nas lutas da época: MUNAF, MUD e candidaturas de Norton de Matos e Humberto Delgado. A história mais impressiva, que contava, sem mágoa ou vaidade, como quem descreve o inevitável, foi para mim uma lição de vida.

No dia 16 de Junho de 1958 tinha-se juntado na estação de Santa Apolónia uma enorme manifestação de apoio a Humberto Delgado, que se candidatava a Presidente da República ameaçando demitir Salazar. A polícia tinha reprimido a multidão a tiro. Um operário de Almada foi atingido na mão e fugiu para o consultório do dr. Barbeitos, que o tratou às escondidas. A PIDE, que já o trazia debaixo de olho há muito, aproveitou e deteve-o na véspera da eleição, em 7 de Junho. Ficou preso 11 meses na cadeia do Aljube, onde sofreu a “tortura do sono” e outros “mimos”.

Em 5 de Maio de 1959 foi julgado no Tribunal Plenário da Boa Hora, acusado de fazer parte de uma organização secreta, subversiva e ilegal, de ter recebido imprensa clandestina, de ter contribuído com 500$00 para a organização, de ter fornecido medicamentos e tratado no consultório os membros da organização e de os ter deslocado no automóvel particular para efeitos ilegítimos. De pouco lhe valeram as 20 testemunhas abonatórias, que incluíam juízes conselheiros e oficiais superiores do Exército e da Armada. Foi condenado a 12 meses de prisão e 3 anos de suspensão de direitos políticos. Pelo bom comportamento, pelos serviços prestados como médico durante a guerra e por ser o amparo da mãe, acabou por ver a pena suspensa e sair em liberdade no dia 7 de Maio de 1959. O seu advogado de defesa, Manuel Sertório, também ele antifascista, viria a exilar-se nesse ano e só regressou a Portugal em 1974.

A parte mais interessante da história veio depois. O procurador que o tinha acusado no Tribunal Plenário foi mais tarde promovido a juiz e colocado no tribunal de trabalho de Almada, onde o dr. Barbeitos fazia perícias médicas. Tranquilo mas convicto, com o sentido da honra e do dever, pediu imediatamente uma audiência ao novo juiz. Disse-lhe que continuava a ser comunista e que aceitaria ser dispensado das funções de perito se a sua militância fosse considerada um obstáculo. O juiz engoliu em seco mas manteve-o em funções. Provavelmente com admiração.

Cada um tem as suas lembranças do 25 de Abril. Estas são as minhas. Uma história de coragem e desprendimento que hoje contarei aos meus filhos.

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