Também quero ser gravada assim, quase a cair pelo abismo fora

Não filmo nas casas das pessoas, porque isso tanto poderia ser em Portugal, como na China. Prefiro filmá-las nas paisagens, quase a caírem pelo abismo fora.

Um dia, Sofia Belchior, 85 anos, perguntou-me, a propósito de a filmar no seu jardim, na sua paisagem, da qual ela era jardineira: “Ó moço marafado, porque me grava aqui sempre no jardim? Fui lá a Tavira, vi o seu filme, vi que grava todas as outras pessoas naquelas paisagens, quase a caírem pelo abismo fora. Também quero ser gravada assim, quase a cair pelo abismo fora, tem algum jeito gravar-me aqui no jardim, que acaba logo ali?” Fiquei a pensar no que queria dizer Sofia Belchior – o que era gravar no abismo? E por que achava que o seu jardim acabava logo ali? (o jardim é enorme, lindo, bem tratado).

No meu trabalho, o local onde gravo é o mais importante; levo horas, com as pessoas atrás, à procura do espaço onde as posso colocar, de forma a que tenham o seu palco, o seu quadro – onde possam ser o que quiserem, mas que mostre o lugar onde estão, onde vivem. Perguntam-me “Por que não grava aqui em casa?, aqui na sede, aqui dentro?”, e replico sempre “Não gravo aqui, porque isso tanto poderia ser em Portugal, como na China”.

A minha relação com o espaço onde gravo é uma questão complexa. Durante muito tempo, inconscientemente, procurei o romantismo: o xisto, o granito, o pote de três pés em cima do lume, as vacas que chegam ao fim do dia. Fugia dos postes de electricidade, da casa do emigrante, que trouxe a Suíça para a aldeia. Depois, comecei a pensar na importância do que gravava, e na relação que as pessoas tinham com os locais onde queriam ser gravados – nos largos, nas fontes, em frente às igrejas. O seu lado afectivo com os monumentos interrogou-me: procurava eu uma imagem que definisse um lugar?

Muitas vezes, as paisagens eram construídas por recriações numa parede branca – o grupo coral infantil que recria uma aldeia antiga, com a cena do linho, do pão, o homem que cava, a ceifeira. Outras vezes, era uma inscrição num largo. Percebi que a ideia das pessoas de uma boa paisagem para gravar nada tinha a ver com a minha ideia de um lugar, onde pudesse registar o aqui e agora. Se gravo a tradição oral de um local, o lugar onde se insere é tão importante como o resto, acho eu. Então comecei, em cada localidade, a ter pontos estratégicos, onde aquilo que eu gostava se coadunava com o que me queriam, de certa forma, impor.

Os campos de futebol, as eiras, aquilo que se vê das capelas no ponto mais alto ao lado das terras, e assim por adiante. Percebi que as pessoas não entendiam a paisagem onde queriam gravar como algo que as caracterizasse, antes como algo que imaginavam que poderia ser um postal, uma fotografia de calendário.

O que se vê da janela nunca é a paisagem – não é apenas o que se vê, mas tudo o que está à nossa volta e se sente. O som também é uma paisagem, e se vamos gravar, preferimos sempre sons característicos, como o vento e o chilrear dos pássaros, aos indiferentes, como o trânsito, as moto-serras ou as fábricas. Aqueles sons são tão característicos de um local como aquilo que se pode ver.

E, por isso, procuro aquilo que caracteriza um lugar, para além das canções e do que pode ser dito: a forma como vivem, que sons e pássaros sentem, em que trabalham. Aquilo que procuro é o lado humano, as razões sociais, económicas e culturais que fazem aquele lugar diferente do outro – porque cada vez mais os lugares são iguais, as casas são iguais, as culturas são iguais. E voltamos sempre ao mesmo: não filmo nas casas das pessoas, porque isso tanto poderia ser em Portugal, como na China. Prefiro filmá-las nas paisagens, quase a caírem pelo abismo fora.

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