Sentir a água, nadar sem ver

No Porto há uma aula de natação exclusivamente destinada a pessoas cegas ou com pouca visão. Com o recurso à voz e ao toque, um conjunto de professores ensina aos seus alunos como se devem relacionar com a água. Alguns estão a reaprender a nadar, depois de terem perdido a visão, outros enfrentam a água pela primeira vez. As suas histórias são de resiliência e optimismo.

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Dentro da piscina, Rita Fernandes agarra na mão de Marlene e prepara-se para a colocar sobre a sua própria cara. “Quando mergulhamos, fazemos bolinhas pelo nariz. Vamos pôr aqui as mãos.” E cola a mão da mulher sobre a sua boca e o nariz, enquanto exemplifica o que acaba de dizer. Pouco depois, segura no braço de Sembo e vai falando à medida que o movimenta. “Temos aqui o cotovelo, ele é que manda. A mão direitinha, esticada, força. Vamos sentir um bocadinho a força, vai ter de me empurrar, vou puxá-lo para trás e vai ter de me empurrar.” E ele, sem ver o que está a fazer, segue gestos e palavras e empurra.

Marlene e Sembo são dois dos alunos cegos ou com baixa visão que desde o ano passado frequentam uma aula de natação que lhes é inteiramente dedicada, nas piscinas de Campanhã, no Porto. A ideia partiu de Rita Fernandes, ex-nadadora profissional e com um mestrado feito na área das sensações. A antiga atleta do FC Porto, de 46 anos, que chegou a tentar a classificação para os Jogos Olímpicos de Atlanta, em 1996, é agora presença assídua nas piscinas municipais geridas pelo clube, às quartas-feiras, na companhia de outros professores que ensinam a nadar ou a reaprender a nadar alguns alunos enviados pela Acapo – Associação de Cegos e Amblíopes de Portugal, depois do desafio lançado por Rita, em Junho. O resultado tem sido surpreendente.

“Trouxe-me uma felicidade imensa. É uma troca. Para mim, é quase uma responsabilidade social. Se sei ensinar a nadar, é uma paixão poder transmitir isso a pessoas que não têm tanta possibilidade. E eles têm evoluído de forma tão grande. Desde que entraram até agora é tão diferente, tão diferente, que me faz sentir bem enquanto ser humano. Saio realizada profissionalmente”, diz a professora.

Os alunos da Acapo dividem-se pela piscina maior e por uma média. Na grande, estão aqueles que já se sentem suficientemente confortáveis para enfrentar a água num espaço onde não têm pé. Na outra estão os principiantes ou pessoas como Helena, que, em todos estes meses, nunca molhou a cabeça – nem vai molhar, como avisa. Ao contrário dos outros, não está ali para aprender a nadar (diz que tem problemas cardíacos e que não pode afligir-se com nada), mas simplesmente para sentir o bem-estar que a água lhe dá. Para relaxar. Por isso, enquanto à sua volta alguns alunos vão experimentando a respiração, pondo e tirando a cabeça dentro de água, ou tentando tirar os pés do chão (sob o olhar, as palavras e as mãos dos professores Fátima, Sílvia ou Rui), agarrados a uma prancha flutuadora, ela limita-se a caminhar sempre agarrada à borda da piscina. Ou a tentar perceber como os colegas evoluem. Como Ana, que está ali ao lado, a procurar aprender a respirar dentro de água. “Ó, Ana, anda cá, faz lá”, pede Helena. E toca-lhe enquanto ela mergulha, para sentir e apreender que movimento é aquele.

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Ana não está satisfeita por continuar agarrada à borda da piscina. “Mas eu queria fazer o exercício que a Fátima me ensinou”, lamenta-se, enquanto mete a cabeça debaixo de água, retira os pés do chão e faz bolinhas, sempre com as mãos bem firmes na borda. “Estás a tentar fazer sozinha? Vou dar-te uma prancha. Mas a prancha tem de ficar sempre à tona de água”, avisa Fátima, aproximando-se.

E Ana lá vai. Muito devagarinho. Ao início, inclina-se muito para trás, de cada vez que deixa as pernas flutuarem. Fátima explica-lhe que não pode ser assim. Faz ela própria o movimento e coloca as mãos de Ana nas suas costas, para que ela perceba a diferença. Quando tenta de novo, já corre melhor. E quando finalmente consegue esticar-se na água, só por uns segundos, deslizando apenas com o auxílio da prancha, é a felicidade pura que parece soltar-se do seu rosto e da sua voz, enquanto dá gritinhos de alegria. “Ai, que bom. Ai que sensação boa, a sério.” Foi a primeira vez que conseguiu tirar os pés do chão e deitar-se na água sem estar presa à borda da piscina. “É uma sensação de liberdade… Sou uma pessoa muito nervosa e sinto-me aliviada, é um alívio tão bom… Não dá para descrever. Ai, tão bom, a sério.”

É esta a felicidade que Rita Fernandes diz encontrar nos seus alunos desde que estas aulas começaram e que a levam a desejar que este seja um projecto “de longa duração”. E sempre desafiante. “Nunca tinha trabalhado com cegos e tem sido muito engraçado superar alguns obstáculos, aprender a gerir tudo, ensinar-lhes tarefas. Há coisas que pensei que seriam feitas de uma maneira e acabam por ser de outra. A própria organização da aula, o feedback que obtenho deles, o seu sentido de humor são completamente diferentes do que eu estava à espera. É preciso usar muita criatividade para o ensino de natação com eles”, diz.

Marlene, por exemplo, não gosta de nadar de costas. Diz que não se sente segura. A noção de espaço também é completamente diferente nestes alunos que têm dificuldade em manter-se em linha recta, acabando por chocar, amiúde, com os separadores que delimitam as pistas da piscina. “Eles não gostam, mas se não tiver os separadores, perco-os”, diz Rita. Marlene lamenta-se, mostrando os arranhões nos braços. Rita diz que chegaram, entretanto, estruturas novas, menos agressivas a um contacto indesejado e muitas vezes repetido.

Nas duas piscinas, com auxiliares de flutuação ou sozinhos, mas sempre com as vozes e as mãos dos instrutores por perto, os alunos da Acapo vão alimentando a sua relação com a água. Para alguns, a natação é uma novidade absoluta, para outros, uma oportunidade para reaprender algo que lhes era familiar quando viam normalmente. Para outros ainda, é altura de aperfeiçoar algo que nunca dominaram. Só um homem parece quase não necessitar dos professores. Na sua pista, Jaime atravessa os 50 metros da piscina, para a frente e para trás, com poucas indicações de Rita. A água não costumava ter segredos para ele. Agora, está a desvendar os que se foram formando, à medida que a visão o abandonava.

“Eu chegava ao mar e começava a chorar”

Jaime Oliveira, 57 anos

Os médicos já avisaram Jaime que o mais provável é perder a visão por completo. Diz que até se surpreendem por isso ainda não ter acontecido. Sofre de glaucoma e o que ainda consegue ver, descreve-o assim: “Se pegar numa folha de cartolina e fizer um furo com uma agulha, o que vejo é uma coisa mínima, como se olhasse através desse furo.”

Como é habitual nestes casos, a perda de visão foi gradual, o que, diz ele, dificultou muito a sua adaptação a uma nova realidade, já que, ao princípio, nem se apercebia de que quase já não via do olho esquerdo. “Se é uma coisa repentina, a gente vê e deixa de ver. Quando é muito gradual, com uma descida da visão, o cérebro vai-se adaptando, vai-se reajustando e não se dá por ela, o que torna tudo muito mais perigoso. A noção que eu tinha era de que via como as pessoas normais e, então, continuava a fazer o mesmo de sempre”, diz. Ou seja, conduzia e trabalhava numa vidraria. Os acidentes de trabalho e de viação repetiram-se, antes de ser obrigado a parar.

Jaime descobriu que sofria de glaucoma graças a um médico que praticava mergulho com ele. Depois de experimentar a caça submarina, ainda adolescente, abandonou a adrenalina de capturar espécies marinhas quando o mergulho o apaixonou. “No mergulho, as coisas são bastante distintas, uma pessoa vai adorar a beleza, ver a natureza que há no fundo do mar. Isto depende de pessoa para pessoa, mas eu, ao ver ali a natureza em liberdade, perdi a vontade de pegar numa arma e disparar”, conta.

Impedido de voltar a mergulhar a alta profundidade, diz que ainda se recorda de todo o universo que encontrou no fundo do mar. “Eu agora consigo falar nisso, porque acho que já fiz a aceitação da minha limitação”, diz. Porque a adaptação não foi fácil.

Apesar de ter feito as primeiras cirurgias ao olho esquerdo com apenas 19 anos, só há dez é que Jaime teve de abandonar o emprego como vidraceiro, por causa da falta de visão. A inactividade inicial que acompanhou a nova fase da sua vida foi do mais difícil que teve de enfrentar, diz. E o tempo livre levou-o também a perceber que a relação que vivia já não fazia sentido. Pediu o divórcio. Os primeiros apoios de médicos e psicólogos não o ajudaram — “só me davam medicamentos para eu me acalmar” — e foi preciso algum tempo para que tudo se ajustasse. “O primeiro e segundo ano em que deixei de ver, em que tive de deixar de conduzir, que era o que eu mais adorava, foram de uma revolta muito grande. Muito, muito grande. Uma coisa estrondosa. É preciso mesmo bater no fundo. É preciso morrer. Mesmo morrer. A palavra é essa. Mesmo morrer para depois renascer e aprender tudo de novo”, diz.

Foi ele quem, misturando diversos apoios e terapias, encontrou a receita para esse renascimento. A Acapo fez o resto do trabalho, encaminhando-o para actividades, ensinando-o a organizar-se. Hoje faz vitrofusão em casa. Lida com um forno que chega aos 1200 graus e faz peças decorativas em vidro. Caminha sozinho pela cidade e voltou à água.

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Quando lhe perguntaram se queria frequentar as aulas de natação de Rita Fernandes, aceitou logo. Tinham passado cinco anos desde que entrara no mar ou numa piscina. “Eu chegava ao mar e começava a chorar, desabava logo. Não conseguia entrar. Aliás, há dois anos estive no Porto de Leixões no Open House e quando senti aquela maresia, quando senti o mar e que estava naquele ambiente, desatei em lágrimas, porque senti o fundo do mar, o que eu fazia antes e que agora não podia fazer.”

Desde o primeiro dia, as aulas revelaram-se “uma descoberta”, na piscina que conhecia bem porque a filha, agora adulta, participara ali em diversas competições de natação quando era adolescente. “Eu achava que nunca mais iria entrar na água. Vim com satisfação. Entrar aqui e estar bem, lembrar-me do que já passei cá e estar bem, nestas condições de limitação, para mim foi maravilhoso.” No primeiro dia, diz, não saltou da plataforma. Mas, ao contrário dos colegas que nunca viram, ele sabia o que era uma plataforma, como tinha de se posicionar para entrar bem na água, saltando dali. Hoje, fá-lo sem hesitação. O pouco que vê permite-lhe seguir a linha escura que detecta no fundo da piscina, o que o ajuda a não divergir muito de uma linha recta. Quando nada de costas é mais complicado. “Aí tenho mais dificuldades. Das primeiras vezes estava sempre a bater nos separadores, mas não me atrapalhava. Como já os vira, sabia o que eram e que tinha apenas de me desviar.”

As aulas trouxeram-lhe a técnica que não tinha e mais um passo na vida que aprendeu a ter e que lhe trouxe uma nova consciência sobre cada dia que passa. “É preciso desfrutar do pouco tempo que temos de vida, acho que aprendi isso mesmo. Temos de aproveitar o dia de hoje, porque no passado não se pode mexer e o amanhã não sei se vai acontecer. É preciso é aproveitar o agora, intensamente, o melhor possível.”

“Eu sou a pessoa que era antes, com uma diferença”

Vera Silva, 38 anos

O melhor momento da vida de Vera Silva acabou por se revelar também o mais difícil e inesperado. Portadora de lúpus, procurou informar-se sobre eventuais consequências, na altura em que pensou engravidar. Tinha 20 anos, a informação era pouca e a médica que a acompanhava “desvalorizou um bocadinho” as eventuais consequências. “Ela alertou-me para a possibilidade de a doença se agravar depois do parto.” Apenas isso, garante. Até à altura, Vera só tinha tido uma crise grave, que levou ao diagnóstico da doença, e pensou que era isso que poderia enfrentar. “A única coisa que eu senti nessa altura eram dores, dores articulares, nos músculos, febre alta. Pensei, não é isto que me vai tirar o sonho de ser mãe.” Quando engravidou, em 2004, a realidade foi muito diferente.

Às 27 semanas de gravidez, sofreu uma meningite asséptica, que diz ter resultado do lúpus. “Essa meningite deixou-me a sequela de falta de visão.” Hoje, Vera não tem visão central, apenas periférica, na ordem dos 10% no olho esquerdo e de 5% no olho direito.

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Estava internada há dois dias por causa da meningite quando começou a sentir “a visão turva no olho direito, como um nevoeiro”. No dia seguinte, a mesma sensação passara para o outro olho. Fizeram-lhe exames oftalmológicos e não detectaram algo. Levaram-na para Neurologia e nada foi encontrado. Ela não sabia explicar o que sentia. “Recordo-me de dizer que aquilo que focava não via. Havia um crucifixo e eu dizia, se olhar para o crucifixo, não o vejo, mas se olhar para o lado, já o consigo ver.” Já tinha perdido a visão central.

No hospital — conta — alimentaram-lhe a esperança de que, depois do parto, poderia voltar a ver. Ela diz que compreende. Eram duas vidas em risco, não a queriam deixar demasiado aflita. Quando o menino nasceu, prematuro, porque os tratamentos aplicados à mãe estavam a afectar-lhe o crescimento, a esperança desvaneceu-se. “Tive de lidar com uma coisa maravilhosa que é a maternidade, uma coisa que eu quis, que eu desejei, e ao mesmo tempo lidar com um drama, que é a perda de visão, que nos tira muita coisa. Não estamos preparados para isso, ninguém está. É um ‘o que é que vou fazer, o que vai ser de mim?’ São muitos porquês.”

E a raiva e a não-aceitação. Vera diz que foi para casa antes do filho, porque queria preparar-se, fora do hospital, para a nova realidade que teria de enfrentar. “Eu podia ter ficado com ele, mas disse que queria sair, queria ver o mundo lá fora da forma como o via agora, antes de levar o meu filho nos braços. Depois, veio a fase da esperança, do milagre, de uma solução. Agarrei-me a essa possibilidade.”

Quando, finalmente, o filho foi para casa, Vera não teve medo. Já tratara de crianças e o apoio da família ajudou-a a lidar com o dia-a-dia. Mas descreve os três anos que se seguiram como um tempo que, “no fundo, não estava a viver, estava a sobreviver, à espera que acontecesse o tal milagre”. A vida era constantemente adiada na expectativa do dia em que voltaria a ver. “Por exemplo, gostava de ir a um sítio qualquer com o meu filho, mas pensava — e era automático, não dizia, mas pensava para mim —, vou esperar, para quando eu recuperar a visão desfrutar mais.”

Foi operada e continuou em consultas de oftalmologia e foi o médico que a acompanhou que, finalmente, um dia, a puxou para a realidade. Numa consulta a que foi de braço dado com a irmã, ele perguntou-lhe se já estava a aprender a andar com uma bengala. E quando ela disse que não, ele disse-lhe as palavras que não esqueceu: “Está à espera de quê? De ficar cega totalmente? Depois vai ser mais difícil. Quer ser sempre uma coitadinha?” Ela não queria e aquele, reconhece, foi o tratamento de choque de que estava a precisar. “No dia seguinte liguei para a Acapo. Já tinha o contacto há muito tempo, mas ainda não tinha dado esse passo.”

Ali, diz, descobriu “que podia ir mais além”. Desde que perdera a visão tinha vivido muito resguardada na família, e na associação percebeu que podia fazer tudo. “Excepto conduzir”, diz. Não sente, como Jaime, que foi preciso morrer e voltar a nascer. “Eu sou a pessoa que era antes, com uma diferença.” Mas a adaptação não foi imediata. Por exemplo, nunca mais praticou qualquer desporto desde que perdeu a visão, em 2014. A aula de natação, à qual se juntou em Novembro, representa esse novo passo.

“Eu já sabia nadar. Aprendi sozinha com os primos e primas, e mais tarde andei em ginásios, piscinas. Mas nunca fui a aulas de forma muito sistemática”, diz. Desde que é amblíope que não entrara numa piscina, mas no tempo da praia ia ao mar, sempre acompanhada por alguém. “O mar dá uma sensação de liberdade diferente, o bater nas ondas, o mergulhar nas ondas, as rochas… É uma sensação diferente. Quando é um espaço mais restrito como uma piscina, talvez seja mais fácil e de certa forma mais seguro.” 

Mas não isento de algum receio e cuidados. Vera prefere descer pelas escadas em vez de mergulhar a partir da plataforma. “Ainda não tomei essa liberdade; quando via, não tinha problema com isso”, diz. E a respiração, que nunca aprendera convenientemente, foi, ao início, “um bocadinho difícil”. O resto da técnica está a melhorar, com a ajuda da Rita. “Sabe-me bem. Mas tive alguns momentos complicados, com dores e muitas cãibras nas pernas. Foram muitos anos sem praticar exercício.”

Agora, já anda à procura de outras actividades, para que o exercício físico se instale mais na sua vida. Passaram-se quase 15 anos desde que deixou de ser normovisual. Quando lhe perguntam se está apaziguada com o que lhe aconteceu, diz que “há momentos de tudo”. A revolta ainda aparece, mas menos do que os dias em que não a sente. “Quando dei o passo para a reabilitação, mentalizei-me de uma coisa: ‘Eu hoje estou assim, é assim que eu tenho de viver. Se amanhã estiver melhor, óptimo. Se não estiver melhor, que não esteja pior já é muito bom.’ Foi a esta conclusão que cheguei para dar o passo em frente. Para seguir a vida. E posso dizer que estou de bem com a vida. Há momentos de tudo, há momentos de revolta, em que dá vontade sei lá do quê, mas no outro dia já passa. E o meu filho também é uma grande inspiração para mim.”

“Nunca tinha entrado numa piscina”

Victor Costa, 54 anos

Durante 35 anos, Victor Costa foi bombeiro na corporação de S. Pedro da Cova, Gondomar. Em Agosto de 2015, conduzia uma criança que se magoara na escola para o Centro Hospitalar de São João, no Porto, quando sentiu que alguma coisa não estava bem. Dirigiu-se às Urgências e acabou por ser enviado para o Hospital de Santo António, para uma série de exames. No final, o médico, referindo-se ao olho direito de Victor, disse: “‘Tenho uma notícia desagradável para lhe dar. Essa vista, você esqueça.’ Usou mesmo estes termos. ‘Essa vista é a mesma coisa que perder um braço, nunca mais o consegue meter no sítio’.” Explicaram-lhe que o nervo óptico tinha secado.

Em Abril do ano seguinte, o bombeiro estava de novo ao volante de uma ambulância em marcha de urgência, com um doente que sofrera um enfarte, sem imaginar que aquela seria a última vez que iria conduzir. “Ao chegar à Estação de São Bento, apagou-se a luz. Parei, assustei-me. Depois comecei a ver qualquer coisa e fui a conduzir assim até ao Santo António — arrependi-me de ter feito isso. Fiz o túnel de Ceuta por instinto, ia devagar, mas ainda fiquei pior. Cheguei ao hospital e nunca mais conduzi a partir daí”, conta, com o corpo apoiado na borda da piscina média em que anda a aprender a nadar.

Tentou tratamentos, mas vários médicos disseram-lhe que não havia nada a fazer. Uma cirurgia não resolveria fosse o que fosse. Descreve-se como tendo “baixa visão”. “Consigo identificar obstáculos, consigo desviar-me, mas ando com a bengala, porque se estiver alguma coisa no chão, não me apercebo. Não distingo rostos, só vejo formas.”

Na piscina de Campanhã, durante uma pausa da aula, fala com um optimismo desarmante. Diz que quando perdeu grande parte da visão teve um momento em que pensou: “Como vai ser agora?” Mas que a adaptação foi muito facilitada pelo grande apoio da família, dos muitos amigos que tem e da Acapo, que não se cansa de elogiar. “Depois da ajuda que tive, nem penso nisso sequer. Faço tudo, consigo fazer tudo na mesma, ainda faço mais do que fazia quando via. Só não conduzo. Sinto-me feliz. Aprendi outra vez a ser feliz.”

Uma das coisas que faz é caminhadas com os amigos, por terrenos acidentados ou não. “Eles informam-me, ‘cuidado que o caminho tem muita pedra’, e eu vou com mais cuidado. Ou dizem, ‘Victor, podes ir à vontade’, e sinto-me mesmo feliz”, conta. Mas a grande conquista do antigo bombeiro pode ser esta descontracção que agora ostenta, dentro de água. “Eu nunca tinha entrado numa piscina”, sorri. “Ia à praia mas não arriscava, só molhava os pés. De água gosto muito controlada por mim no chuveiro.”

Victor não sabia nadar. E sempre que lhe falavam no assunto, insistia: “Nadar não é para mim.” Uma decisão que associa ao que diz ser “um trauma de infância”, de quando morava junto ao rio Ferreira. “Quando morria alguém lá afogado, as pessoas o que faziam? Tiravam o corpo e iam pelo meio do monte levá-lo para casa, para fazer o funeral. Isto traumatizou-me bastante, porque eu via-os a passar junto à minha casa. Morria lá muita gente afogada, incluindo alguns colegas meus de infância. E toda a gente que eu ouvia dizer que morreu afogada era gente que sabia nadar. Isso causava-me alguma confusão”, conta.

Foram precisas décadas, a perda de visão e o desafio da Acapo para se juntar às aulas imaginadas por Rita Fernandes para que pusesse o trauma para trás das costas. “Quando me falaram na piscina, disse logo que sim. As pessoas aqui são excepcionais, estamos à vontade com elas.” E teve medo? “Não foi assustador porque a Rita sabia que era a primeira vez que eu entrava numa piscina e pôs-me à vontade. O primeiro contacto foi aprender a respirar debaixo de água. Explicou-me, com os toques, como devia fazer. Engoli alguma água pelo nariz, é normal, agora já controlo melhor. Já me sinto à vontade dentro de água, mas ainda não consigo nadar. Sei dar umas pezadas, mas não posso andar muito tempo com os pés no ar, senão atrapalho-me logo.”

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Agarrado a uma prancha, Victor já é, contudo, capaz de atravessar toda a piscina média onde é acompanhado pelo professor Miguel. No início diz que era “muito esquisito andar com os pés no ar e ser tudo muito levezinho”. Deixar aquele universo aquático, custava-lhe um bocado. “Quando saía da água, nas primeiras vezes, sentia um peso. Agora já não. Já me habituei. É muito saudável e gosto muito.”

Antes de regressar aos exercícios da manhã, reconhece estar “a gostar muito disto”. E que, depois de tantos anos em que a água era quase um inimigo, quer acreditar que, qualquer dia, já não vai precisar de auxiliares de flutuação para se deslocar, suspenso, na água. Nadar está já ao virar da esquina. “Espero que sim”, sorri Victor.

“O mar dá-nos liberdade porque o mar é livre”

Marlene Brandão, 41 anos

Marlene tinha 33 anos quando cegou completamente. O leque de problemas de visão com que conviveu desde sempre — usou óculos desde os dois anos — são desfiados com rapidez: “Tenho glaucoma congénito. E não tenho íris. Agora não dá para notar muito, porque tenho cataratas no olho esquerdo e no direito, e descolamento da retina.” Nada que a tenha impedido de ir à escola, trabalhar, praticar desporto e nadar. Mas, sobretudo, de sonhar, por muito que lhe digam que o maior de todos os sonhos nunca se vai realizar. “Desde sempre sonhei ser camionista, que era a profissão do meu pai. Sei que não o posso realizar, mas tenho-o e guardo-o, porque fica para toda a vida.”

Natural de Santa Maria da Feira, diz que sempre foi “maria-rapaz”, pouco dada à escola e cativada por trabalhos que os seus problemas de visão lhe proibiam. Como ser camionista ou, ainda adolescente, pedir aos pais que a deixassem ir trabalhar para a construção civil, depois de dar uma ajuda nas obras de um anexo da casa onde vivia com os pais e uma irmã mais velha, também com problemas graves de visão. Já adulta, no entra-e-sai de trabalhos ocasionais com que foi gerindo a vida, passou-lhe pelas mãos mais um trabalho improvável. “Fui empregada de limpeza, mas eu própria admiti que não ia ser capaz de cumprir”, diz.

Marlene começou a frequentar um colégio no Porto com ensino destinado a pessoas com problemas de visão n 10.º ano. Depois, tornou-se interna, deixou “as saias da mãe” e viu-se envolvida pelo trânsito e as ruas largas que desconhecia. Aprendeu a usar a bengala, apesar de na altura ainda ver alguma coisa, e fez o curso de telefonista. Quando terminou a formação e chegou a altura de fazer estágio, comunicou à directora da escola que queria arranjar uma casa fora dali. “Queria viver a minha vida lá fora.”

É isso que tem feito desde então, com mais ou menos dificuldades, admite, porque nem sempre tem emprego. O que nunca perdeu foi a vontade de ir à luta e de aprender coisas novas. Foi assim que, com “nove ou dez anos”, numa visita à ria de Aveiro, decidiu que era hora de experimentar aprender a nadar, copiando os movimentos de um cão que acompanhava o grupo em que seguia. “Aquele cachorro para mim ficou como um herói, porque me ensinou alguma coisa.” Mas era tudo muito rudimentar, admite. Ia ao mar e ao rio, mas não arriscava ir para zonas onde não tivesse pé e, sempre que ensaiava umas braçadas, estava pronta a colocar os pés no chão, mal sentisse alguma ansiedade.

A situação melhorou um pouco em 2009, quando pediu ajuda à Câmara de Gaia para frequentar aulas de natação. Aprendeu alguma coisa, mas nunca passou para “a piscina funda” e, como a aula incluía normovisuais e não era especificamente dirigida às suas necessidades, ainda estava longe de dominar a técnica quando um problema nos pulmões, no ano seguinte, a obrigou a abandonar a piscina.

Regressou agora, com as aulas sonhadas por Rita Fernandes, e tem arriscado cada vez mais na piscina maior. Até já saltou para a água de uma das plataformas instaladas na zona mais funda, depois de muito (muito, muito) nervosismo e hesitação. Só se sente mais aflita quando lhe pedem para nadar de costas. “Eu perco-me dentro de água. Por vezes não mostro a ansiedade em que fico, mas vem-me vontade de chorar, fico mesmo em pânico. Quando estamos de costas, a audição fica nula e eu perco-me dentro de água. Sinto-me… Tem tanta gente ali e eu sinto-me sozinha, desesperada, nunca mais chego ao fim, acho que a piscina tem o triplo do tamanho”, conta. Mas não desiste. E a cada quarta-feira, lá está ela pronta para entrar na água e tentar cumprir todos os exercícios que lhe pedem.

Respirar dentro de água, que foi difícil de conseguir controlar, já não tem segredos para ela. Agora diz que coordenar tudo — respiração, pernas, braços e evitar bater contra as laterais, com que “embirrou” porque fica com marcas na pele sensível — é a próxima batalha a vencer. Quem a vê a percorrer metade da piscina de 50 metros diria que está no bom caminho.

Marlene diz que se sente ali “superbem”, mas admite que nada supera o mar. “O meu primeiro impacto com muita água foi em 2016, no início da linha de Cascais, onde o rio Tejo se junta ao mar. A água estava parada — aqui no Norte tem muitas ondas — e aquilo para mim foi uma liberdade. Fascinou-me. Não queria sair da água.” Nas ondas do Norte continua a “não arriscar” ir mar adentro, mas mais para sul, onde a água acalma, diz já ter o conforto para ir até onde não tem pé. “Sinto a segurança de poder voltar, desde que tenha uma voz que possa seguir.”

Praticante de vários desportos — fez parte da selecção nacional que participou no campeonato Europeu de Goalball —, diz que o à-vontade que ganhou na água lhe trouxe o que nunca deixou de procurar. “No mar, sinto-me mais livre. O mar dá-nos liberdade porque o mar é livre. Ele é que manda e desmanda nele.” Quando o tempo aquecer e para lá voltar, já será com nova desenvoltura, depois de tantas e tantas braçadas nas águas da piscina de Campanhã.

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