O prazer de não fazer nada

Até quando não estamos a trabalhar, no sentido clássico, não paramos de o fazer, em rede, nas redes sociais, num rodopio, em busca de contactos. Toda a gente parece apresentar-se socialmente, a toda a hora, como potencial labutador.

Há coisas para as quais ninguém nos prepara. Por exemplo, para o não fazer nada. Trocar o fazer pelo estar. Não nos dedicarmos a uma actividade produtiva e desfrutar disso sem culpa. Parece simples, mas não é. Falta-nos tempo, hábito, instrumentos e políticas. Sobra a pressão social. Não fazer nada ainda é desperdício e não benefício, inclusive capaz de fazer subir, no limite, os índices de produtividade ou de criatividade.

Claro que o não fazer nada não é literal. Até porque em boa verdade não existe tal. Trata-se, antes, de nos dedicarmos a qualquer coisa que não tem de ter uma utilidade imediata, possuída por uma urgência, necessidade ou finalidade qualquer. Trata-se de fazer coisas que nos apetece fazer, conduzindo-nos para um estado de menos acção e mais contemplação.

Caminhar sem finalidade ou destino certo. Estar com pessoas de que se gosta. Conversar com alguém ou ler sozinho. Imaginar o mundo como gostaríamos que ele fosse, esquecendo-nos um pouco de como ele é, sem criar expectativas desfasadas da realidade. Deixarmo-nos estar num local vendo quem passa. Desligar o computador, TV ou telemóvel e respirar ou aceitar o silêncio apenas. Enfim, as hipóteses são infinitas. Quando as pessoas têm tempo para elas, não estão paradas a fazer nada. Têm oportunidade de olhar para si ou construir projectos colectivos.

Existiu um tempo onde parecia que caminhávamos para aí. Mas pelo contrário a distinção entre tempo livre e trabalho está cada vez mais diluída. O desemprego, a fragmentação, a precariedade ou as desigualdades salariais, levaram-nos para aí. Até quando não estamos a trabalhar, no sentido clássico, não paramos de o fazer, em rede, nas redes sociais, num rodopio, em busca de contactos. Toda a gente parece apresentar-se socialmente, a toda a hora, como potencial labutador. Já não é só trabalhar. É também estar sempre à procura dele, prova de como a nossa organização socioeconómica é deficiente, incapaz de distribuir com equitatividade a riqueza, o saber, o trabalho e o lazer.

O trabalho permeia todos os aspectos da nossa vida. É como se toda a actividade humana se reduzisse a ele. Somos o que fazemos, dizemos. Não é fácil mudar este pensamento. É uma ideologia enraizada. Era preciso repensar conceitos, do ponto de vista cultural e político, e tentar transformar colectivamente o sistema e as suas políticas laborais, para que todos tivessem direito ao trabalho e ao ócio, num cenário onde a cooperação fosse muito mais valorizada do que a competição.

Pelo contrário, economicamente continuamos na miragem do crescimento infinito, e culturalmente vivemos numa sociedade em estado de urgência permanente, que só parece reagir à efervescência, ao drama, ao desastre, talvez porque ainda associamos essas ideias ao estar vivo, a uma existência excitante, plena, intensa. Há quem viva sempre assim, num fluxo constante de altos e baixos diários, procurando estímulos que possam suprir o imenso vazio. Mudança pela mudança. Acordar de manhã e desejar que todos os dias sejam o máximo e sempre diferentes.

A ironia é que nesse movimento incessante nem nos apercebemos que, sim, todos os dias são realmente diversos. Não há dias iguais. Uma verdade elementar, difícil de experimentar, cercados que estamos de voragem, ruído, culpas, medos, lixo psicológico. Passam o tempo a incitar-nos a estudar, competir, produzir e consumir. Mas ninguém nos predispõe para o nada. Qualquer coisa intangível. Uma realidade que é, apenas: a permanência, o estar, o abandonar-se, o prazer de não fazer nada. 

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