Incêndio da Notre-Dame pode ter resultado de um curto-circuito

O arquitecto que supervisionou a instalação do sistema anti-incêndio acha implausível a tese de curto-circuito avançada por fonte policial. Mas as investigações só poderão avançar quando o risco de eventuais derrocadas estiver ultrapassado.

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Um responsável da Polícia Judiciária francesa afirmou à agência americana Associated Press que os agentes mobilizados para investigar a causa do incêndio da Catedral de Notre-Dame estão convencidos de que este terá tido origem num curto-circuito. O mesmo polícia, que quis manter o anonimato, adiantou no entanto que, por razões de segurança, a equipa ainda não teve luz verde para inspeccionar o interior da catedral.

A fragilidade de algumas estruturas do edifício na ressaca do incêndio é agora a preocupação mais imediata, tendo algumas paredes sido já escoradas com pranchas de madeira, para as estabilizar, adiantou a mesma fonte. Um dos principais receios é o de que eventuais derrocadas possam danificar o órgão principal, que milagrosamente sobreviveu quase intacto ao fogo que destruiu parcialmente a catedral na noite de segunda-feira passada.

A tese do curto-circuito poderá ser plausível, mas não surgiram até ao momento, tanto quanto foi divulgado, quaisquer testemunhos ou provas materiais que a sustentem. E há quem a considere improvável. Benjamin Mouton, um arquitecto especializado em restauro de edifícios patrimoniais que esteve destacado pelo Ministério da Cultura francês na Catedral de Notre-Dame de 2000 a 2013, lembra que toda a instalação eléctrica foi renovada já nesta década e mostra-se taxativo: “Não é possível ter havido um curto-circuito.”

Mouton garante que o sistema de protecção de incêndios montado na catedral, e cuja instalação ele próprio coordenou, incluiu a remoção de uma série de portas de madeira, que foram substituídas por portas corta-fogo de alta segurança, bem como a limitação de aparelhos eléctricos, que foram totalmente proibidos na zona superior, junto à estrutura de madeira que suportava o telhado.

O arquitecto adianta que já falou com o seu sucessor no cargo, Pierre Villeneuve, e que este se mostra igualmente “incrédulo” perante este incêndio, que logo na segunda-feira à noite começou a ser atribuído ao estaleiro das obras de restauro da catedral e que se teria iniciado na zona onde a nave e o transepto se cruzam.

Mas também o ponto de origem do fogo não foi ainda estabelecido, e determiná-lo com segurança implicará um trabalho moroso. O secretário-geral do Sindicato Nacional dos Funcionários da Polícia Científica (SNPPS), Benjamin Gayrard, descreveu o processo à rádio France Info: “Vamos seguir o desenvolvimento do fogo às arrecuas até encontrarmos o local onde foi originado.”

Um trabalho que só poderá ter início quando todo o interior da catedral for dado como seguro, algo que ainda não aconteceu – há, por exemplo, quatro quadros de grandes dimensões que esta sexta-feira ainda não tinham sido retirados por estarem em zonas consideradas de risco. Só depois a polícia científica será autorizada a entrar. A partir desse momento, explica este responsável, será possível “examinar o local, fotografar e filmar tudo, e começar a verificar os efeitos provocados pelo incêndio, vendo que caminhos seguiram os fumos, avaliando os diferentes níveis de degradação dos materiais e a profundidade a que foram atingidos pelas chamas”. O processo pode enfrentar “obstáculos técnicos”, reconhece, dado o nível de destruição provocado pelo fogo e pela água usada para o combater, mas Gayrard acredita que os investigadores irão ser capazes de determinar com exactidão o ponto em que o incêndio começou.

"Lixo tóxico"

Uma consequência do desastre que não foi imediatamente equacionada, mas para a qual a associação ambientalista Robin des Bois tem vindo a chamar a atenção é o risco de envenenamento por chumbo, já que haveria pelo menos 300 toneladas deste metal tóxico na flecha que se afundou nas chamas e no revestimento das madeiras do telhado.

Recomendando que todos os bombeiros e restantes pessoas que participaram na luta contra o incêndio ou no salvamento dos tesouros da catedral sejam submetidos com urgência a exames médicos, a associação defende que a catástrofe de segunda-feira deixou Notre-Dame “num estado de lixo tóxico”.

Identificar, triar e eliminar as substâncias perigosas presentes nos escombros, do entulho e das cinzas ao que restou da água despejada sobre as chamas, deveria ser mais prioritário, argumenta a Robin des Bois, do que lançar um concurso internacional para a reconstrução da flecha.

Também as avultadíssimas verbas entretanto doadas para a reconstrução da catedral, que menos de uma semana após o incêndio já atingem cerca de mil milhões de euros, continuam a provocar um aceso debate, com muitas vozes a lamentarem que o combate à pobreza não suscite a mesma generosidade ou a sugerirem que parte deste montante seja desviado para restaurar ou proteger outros edifícios patrimoniais. O dinheiro que agora foi possível reunir em poucos dias corresponde ao orçamento global que o Estado francês atribuíra ao conjunto de todo o património nacional em 2019, e é mais do dobro da verba destinada à preservação de monumentos.

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