Notre-Dame: O que leva as empresas a investir milhões para “melhorar o mundo”?

Em poucas horas, os maiores grupos doaram um valor superior àquele atribuído à Cultura, em Portugal, pelo Orçamento do Estado.

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Reuters/PHILIPPE WOJAZER

Menos de 24 horas depois do início do incêndio que destruiu uma parte significativa da catedral de Notre-Dame, em Paris, já se juntavam pelo menos 600 milhões de euros em doações para os trabalhos de reconstrução do monumento. O valor provinha apenas de quatro empresas francesas: LVMH, Kering, L’Oréal e Total — incluindo três das famílias mais ricas do país.

Primeiro foi François-Henri Pinault, director executivo do grupo Artémis (dono da Kering, cujo portefólio de marcas inclui a Gucci e a Saint Laurent), que se chegou à frente, prometendo 100 milhões de euros para o esforço de reconstrução. “Na noite passada, como muitos outros franceses, eu estava a ver a tragédia de Notre-Dame a arder à minha frente e estava tão chocado, entre crianças adultos, todas as pessoas a chorar a olhar para aquilo. E tive de fazer alguma coisa”, justificou o executivo à Euronews.

Pouco depois, o grupo LVMH — gigante do luxo responsável por marcas como Louis Vuitton e Christian Dior, que em 2018 facturou 46,8 mil milhões de euros — falava da vontade de “mostrar solidariedade neste tempo de tragédia nacional”, doando 200 milhões de euros. A família Bettencourt Meyers, responsável pelo grupo L’Oréal, comprometeu-se com o mesmo valor. E a petrolífera francesa Total acrescentou mais 100 milhões.

Assim se juntou, em poucas horas, um valor superior àquele atribuído à Cultura, em Portugal, no Orçamento do Estado de 2019 (501,3 milhões de euros em despesa consolidada). Outras empresas juntaram-se ao esforço, incluindo a JCDecaux (20 milhões de euros), o banco Société Générale (10 milhões), o Crédit Agricole (5 milhões), a Walt Disney (5 milhões de dólares) e a Apple (que não anunciou um valor). Segundo a Associated Press, o total de doações já se aproximava dos mil milhões de euros na tarde desta quarta-feira.

Se por um lado há um sentido de missão, é verdade também que os princípios das heritage brands — como frequentemente são mencionadas, em inglês — da LVMH e da Kering estão em linha com o património cultural. O valor dos seus produtos de luxo está na mestria artesanal acumulada ao longo de séculos e na sua ligação à história e tradição das pessoas envolvidas. Da mesma forma como olham para o passado, também apoiam a renovação e a criação de arte contemporânea. A LVMH estabeleceu em 2006 a Fundação Louis Vuitton — cuja sede foi concebida anos depois por Frank Gehry. E François-Henri Pinault está a construir um museu de arte contemporânea no centro de Paris.

No seu site, a Kering apresenta-se como “um produto da história rica e diversa”, influenciada pelas “ligações naturais entre a arte, cultura e património”. Já a LVMH, diz que cada uma das casas “cria produtos que encarnam o savoir-faire único, e a ligação dinâmica com a modernidade”.

Do produto para a causa

“É, não só uma oportunidade de ajudar, mas também uma oportunidade de marketing de comunicação”, classifica Pedro Mendes, director do Instituto Português de Comunicação e Marketing (IPAM) de Lisboa, em referência às doações para a reconstrução da catedral de Notre-Dame. “Grande parte destas marcas estão associadas a Paris, ao glamour de Paris, portanto há aqui uma outra motivação”, aponta ainda Pedro Mendes. É reveladora a forma como a LVMH descreveu a catedral no comunicado: “um símbolo de França, da sua heritage e da unidade francesa”.

O especialista olha também para o caso como um “reflexo da mudança do marketing”. Se, no passado, as marcas destacavam-se pela sua irreverência e pela inovação (sendo as primeiras a lançar um produto, por exemplo), hoje a diferença “faz-se na resposta à pergunta: o que é que esta marca fez para contribuir para melhorar o mundo que está à nossa volta?”. Por outras palavras, o foco passou do produto para a causa.

Portanto, há uma motivação para a ligação ao património cultural. “Vão estar associadas a algo que vai perdurar no tempo. Se calhar por isso, estes investimentos são avultados. Em vez de gastar muito dinheiro a comunicar de outra forma, sei que tenho ali uma coisa que é intemporal. Vai permitir posicionar a minha marca, ter reputação”, comenta.

Em Itália — o país com maior número de locais classificados como Património da Humanidade da Unesco — tem havido uma tendência crescente da acção de empresas privadas (marcas de luxo, em grande parte dos casos) no restauro e manutenção de monumentos históricos. O estudo New Models of Public-Private Partnership in Cultural heritage sector: Sponsorships between models and traps, de 2016, mostra que é cada vez mais necessário este tipo de mecenato para salvaguardar as estruturas do património cultural, tendo em conta também a diminuição das verbas públicas.

Veja-se alguns exemplos. A marca italiana Tods atribuiu 25 milhões de euros ao restauro do Coliseu, em Roma. Também na capital italiana, a Fontana di Trevi foi restaurada com a ajuda da doação de dois milhões de euros da Fendi — que ali organizou um desfile de moda para sinalizar a conclusão da obra. Já a joalheira Bulgari investiu 1,5 milhões de euros para recuperar a escadaria da Praça de Espanha, também em Roma. E em 2017, a Gucci anunciou que iria doar dois milhões de euros para recuperar e manter os jardins de Boboli, que pertencem ao Palácio Pitti de Florença.

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REUTERS/Max Rossi

O Governo italiano tomou nota e em 2014 criou um incentivo fiscal para quem apoiasse a cultura do país. Ignazio Marino, então presidente da Câmara Municipal de Roma, chegou a apelar à ajuda internacional, listando os monumentos da cidade que precisavam de restauro, cujo valor total estimado era de 270 milhões de dólares, segundo o New York Times. “Não acho que esta seja uma responsabilidade que pertença a Roma ou aos romanos apenas — pertence à humanidade. Grandes partes da civilização ocidental começaram aqui”, comentou então. Também as empresas em França podem ter deduções na ordem dos 60% ou mais em doações. A família de Francois-Henri Pinault afirmou, na quarta-feira, que não tencionava tirar partido desses benefícios fiscais, segundo a Reuters

O que mudou? Seria o caso diferente há uns dez ou 20 anos? “Provavelmente haveria mais doações individuais”, supõe Pedro Mendes. É uma tendência que os dados de um relatório anual da Federculture, citado no estudo acima mencionado, ilustram. Olhando para o período de 2010 a 2013, houve uma diminuição das contribuições de “privados e entidades não comerciais” e um aumento ligeiro de contribuições de “empresas e entidades comerciais”. Em 2013, o valor de investimento privado, em Itália, foi de 36,8 milhões de euros.

As doações à catedral de Notre-Dame destacam-se pelo volume. Pedro Mendes não tem conhecimento de doações de empresas ao património que se aproximem da escala daquelas que foram feitas esta semana. Essa é uma das duas questões que o surpreendem. A outra é a velocidade com que as empresas se chegaram à frente.

Como escreve Rui Tavares, no PÚBLICO, “a Notre-Dame resume em si grande parte da história deste continente”. E quando “se reerguer, como decerto acontecerá, ela reerguer-se-á para a toda a humanidade”. A esta ideia, acrescenta o New York Times: “As doações como as dos Arnaults e Pinaults são um reflexo de quão pessoal e profundamente o fogo tocou na identidade dos cidadãos franceses e nos seus negócios”.

Notícia actualizada às 18h58. Foram acrescentadas informações em relação às doações de diferentes empresas, bem como a declaração da família de Francois-Henri Pinault de que não tenciona tomar partido de benefícios fiscais.

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