Fazer leis à medida dos casos políticos

Estamos a legislar cada vez mais para o caso concreto, para os factos graves ou menos graves que se tornaram insuportáveis de gerir politicamente.

No sábado vim trabalhar e, como sempre, fiz a viagem toda a ouvir rádio. Falava-se, ainda, das nomeações familiares e da iniciativa legislativa do Presidente sobre o mesmo tema. Quilómetro após quilómetro, junto ao Tejo, a minha mente foi vagueando pelos assuntos até que ficou presa a uma evidência: estamos a legislar cada vez mais para o caso concreto, para os factos graves ou menos graves que se tornaram insuportáveis de gerir politicamente, para a notícia viral e às vezes até para o fait divers que alimenta as redes sociais.

Exemplos? Apareceram-me quatro na cabeça e em catadupa, o que não significa que sejam casos únicos. Recupero-os aqui pela ordem cronológica.

Galpgate: Três secretários de Estado, que foram a França assistir aos jogos do Euro 2016 a convite da Galp, demitiram-se pouco antes de se saber que seriam constituídos arguidos no âmbito de uma investigação do Ministério Público. Em tempo recorde, o Governo aprovou um código de conduta cuja medida mais emblemática foi a criação de um tecto máximo de 150 euros para as prendas que os governantes podem receber.

Caso Domingues: O Governo convidou António Domingues para a administração da CGD. Algures neste processo, por causa de um “erro de percepção” — como lhe chamou o ministro Mário Centeno —, Domingues ficou com a ideia de que seria criado um estatuto especial para ele e para os membros da sua equipa de modo a isentá-los de depositarem as suas declarações de rendimento e património no Tribunal Constitucional. Por outras palavras, o Estatuto do Gestor Público não lhes seria aplicável. O caso foi polémico e acabou no Parlamento, onde PSD e BE se juntaram para aprovar a obrigatoriedade de os gestores da CGD apresentarem as duas declarações. “Domingues considerou quer era uma lei ‘ad hominem’, contra uma pessoa, contra ele, e considerou-se ofendido”, revelou, então Marques Mendes, justificando o pedido de demissão do banqueiro.

Incêndios rurais: Pela primeira vez em 2018, e depois dos fogos mortíferos de 2017, foi alterada uma lei antiga que obrigava à limpeza dos terrenos. As multas previstas podem ir agora dos 280 aos 10 mil euros (no caso de pessoas singulares) ou até aos 120 mil (pessoas colectivas). No primeiro ano de aplicação da lei, porém, o primeiro-ministro teve de flexibilizar os prazos para limpeza e aplicação de multas. “O objectivo da campanha não é caça à multa”, disse António Costa, na altura. 

Familygate: Finalmente, o PS propôs um diploma que proíbe as nomeações familiares redigido a reboque de demissões entre parentes no Governo. A proposta socialista legaliza as nomeações cruzadas (“o meu familiar nomeia o teu e vice-versa”) e apenas evita que se repitam casos com o do ex-secretário de Estado do Ambiente que nomeou o seu primo para o seu gabinete. Foi preciso mudar alguma coisa para ficar quase tudo na mesma.

A lei é, por definição, geral e abstracta. Não pode ser, como uma sentença, feita à medida (e a posteriori) para um indivíduo ou uma circunstância. O que fizemos nestes quatro casos políticos concretos foi mais parecido com sentenciar do que com legislar.

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